A PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL E O PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA
Alessandra Granucci Rodeguer
A Prisão do Depositário Infiel e o Pacto de São José da Costa Rica
Tese de Láurea apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Bacharel em Direito.
Departamento de Direito Internacional e Comparado.
Orientador: Prof. Dr. Alberto do Amaral Júnior.
DEDICATÓRIA
A Deus, Senhor de meus caminhos, pelo presente de ter estudado nesta Faculdade.
A meus pais e minha irmã.
Ao Professor e Orientador Dr. Alberto do Amaral Júnior, pelo auxílio, amizade,
compreensão e confiança, que proporcionaram a concretização deste trabalho.
RODEGUER, Alessandra Granucci, A Prisão do Depositário Infiel e o Pacto de São José
da Costa Rica, Tese de Láurea, São Paulo, Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, 2009.
RESUMO
A possibilidade de prisão civil do depositário infiel suscita controvérsias nas instâncias judiciárias e na doutrina, destacando-se por abranger a questão relativa ao direito fundamental à liberdade e por vincular-se à análise da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico interno, mais especificamente, do Pacto de São José da Costa Rica. Ratificado pelo Brasil em 1992, o Pacto de São José da Costa Rica não permite a prisão por dívidas, exceto a do devedor de obrigação alimentícia, não admitindo a outra exceção estipulada em nossa Constituição Federal, relativa ao depositário infiel, no artigo 5º, LXVII. A hierarquia desse tratado internacional perante o ordenamento jurídico interno tem sido tema de discussão entre os juristas, havendo as seguintes teorias: hierarquia supraconstitucional, hierarquia constitucional, hierarquia de lei ordinária, e hierarquia infraconstitucional, porém supralegal, entendimento esse aceito pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, e que demonstra uma importante evolução jurisprudencial quanto ao tema, segundo os juristas. Assim, nas mais recentes decisões, nossa Corte Maior determinou a impossibilidade de prisão civil do depositário infiel de qualquer espécie, concretizando o respeito ao direito à liberdade,cláusula pétrea de nossa Constituição.
Palavras-chave: Tratados Internacionais; Pacto de São José da Costa Rica; Prisão civil; Depositário infiel; Liberdade.
SUMÁRIO.
I. INTRODUÇÃO
II. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
II.1. Histórico
II.2. Conceito
II.3.Dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
III. DA HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS
III.1. Da Hierarquia dos Tratados Internacionais não Relativos a Direitos Humanos
III. 2. Da Hierarquia dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos
III.2.1. Da Emenda Constitucional Nº 45/2004
IV. DO DIREITO COMPARADO
V. DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA
RICA – E DA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL
V.1. Da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos
V.2. Do Depositário
V.3. Da Prisão Civil
V.4. Da Polêmica a Respeito da Possibilidade de Prisão do Depositário Infiel
V.4.1. Da Polêmica a Respeito da Hierarquia do Pacto de São José da Costa Rica
V.4.1.1. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status de Lei Ordinária
V.4.1.1.1. Prisão Regular
V.4.1.1.2. Prisão Irregular: Pacto de São José da Costa Rica Revogou o Código Civil
V.4.1.2. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status de Norma Constitucional
V.4.1.3. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status Supraconstitucional
V.4.1.4. Da posição atual do STF: Pacto de São José da Costa Rica com Status Supralegal, mas Infraconstitucional.
V.4.2. Da Polêmica a Respeito da Abrangência da Palavra “Dívida” e da Prisão do Fiduciante Devedor.
VI. DA VIOLAÇÃO DO COMPROMISSO INTERNACIONAL E DA RESPONSABILIDADE
INTERNACIONAL PELA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL
VII. DA COMPETÊNCIA DO STF PARA JULGAR A QUESTÃO
VIII. DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE
IX. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
I. INTRODUÇÃO.
A prisão civil do depositário infiel suscita controvérsias nas instâncias judiciárias, especialmente na jurisdição dos Tribunais Superiores (STJ e STF), e também na doutrina. Trata-se de uma questão de extrema relevância que atualmente está sendo analisada com mais afinco pelo Judiciário, já que envolve o cerceamento da liberdade do ser humano, direito fundamental. O assunto envolve, assim, expectativas que extrapolam o campo material da necessidade de receber determinado crédito ou recuperar o bem, alcançando o direito individual de liberdade.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LXVII, determina que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. O Código Civil de 2002 prevê, no artigo 652, seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos, e o Código de Processo Civil prescreve também, no artigo 904, parágrafo único, a prisão do depositário infiel, qualificado pela doutrina como aquele que recebe a incumbência judicial ou contratual de zelar por um bem, mas não cumpre sua obrigação e deixa de entregá-lo em juízo, de devolvê-lo ao proprietário quando requisitado, ou não apresenta o seu equivalente em dinheiro na impossibilidade de cumprir as referidas determinações.
No entanto, o Brasil, em 1992, ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que, em seu art. 11, dispõe que “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada Pacto de São José da Costa Rica, cujo art. 7.7 estabelece que ninguém deve ser detido por dívidas e que este princípio não limita os mandados judiciais expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. Pelo fato de o Brasil ter ratificado esses instrumentos sem qualquer reserva no que tange à matéria, doutrina e jurisprudência questionam a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel.
Vale lembrar que a prisão civil não é pena, como prevista no Direito Penal, mas um meio de coerção para compelir alguém que se colocou na posição de depositário infiel a cumprir o compromisso assumido. É por isso que não se subsume às regras de extinção ou cumprimento de pena, previstas no Código Penal.
Além de abranger a questão relativa ao direito à liberdade, o estudo da prisão civil do depositário infiel faz-se interessante por nos levar à análise da estrutura do direito brasileiro vinculada à promulgação de tratados internacionais e da hierarquia desses tratados no direito interno, em especial dos tratados internacionais sobre direitos humanos, tal como o Pacto de São José da Costa Rica.
De acordo com os doutrinadores, os instrumentos internacionais de direitos humanos podem integrar e complementar dispositivos normativos do Direito brasileiro, permitindo o reforço de direitos nacionalmente previstos.
Flávia PIOVESAN explica que os tratados internacionais de direitos humanos inovam ignificativamente o universo dos direitos nacionalmente consagrados, ora reforçando sua imperatividade jurídica, ora adicionando novos direitos, ora suspendendo preceitos que sejam menos favoráveis à proteção dos direitos humanos, destacando que em todas estas três hipóteses, os direitos internacionais constantes dos tratados de direito humanos apenas vêm aprimorar e fortalecer, nunca restringir ou debilitar, o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno. 1
A polêmica relativa à possibilidade de prisão do depositário infiel envolve um conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito interno, e vincula-se à repercussão ou alcance, no direito brasileiro, da adoção do Pacto de São José da Costa Rica, como fato jurídico superveniente à Constituição atual.
Vale lembrar, ainda, que a Emenda Constitucional 45/2004, por ter inserido um “iter de aprovação” diverso para que os tratados de direitos humanos tivessem status de emenda constitucional, também gerou discussões, já que o Pacto de São José da Costa Rica foi ratificado anteriormente a essa estipulação.
Faz-se necessário, assim, analisar as diversas teorias a respeito do tema, além de alguns julgados, objetivando estudar a evolução jurisprudencial relativa ao assunto.
Destaca-se, ainda, a questão da adesão aos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, já que, ratificando os tratados internacionais, o país insere-se como mais um Estado-Nação a optar pela vinculação de suas ações internas a documentos internacionais, responsabilizando-se perante a comunidade internacional. Assim, o ato de infringir as regras dos tratados internacionais, além de conferir um perfil negativo ao país desrespeitador do estabelecido, pode acarretar a responsabilidade civil e a reparação do dano causado.
1Temas de Direitos Humanos, São Paulo, Max Limonad, 2 ed., 2002, p. 31.
Cabe, por fim, ressaltar a relevância do tema tendo em vista que o universo normativo nacional e internacional envolvido nessa polêmica tem fulcro no direito fundamental à liberdade de locomoção do cidadão, cláusula pétrea de nossa Constituição Federal e caracterizada por José Afonso da Silva como o “cerne da liberdade da pessoa física no sistema jurídico, abolida a escravidão”, 2 e como “a primeira de todas as liberdades, condição de quase todas as demais”, 3 segundo Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO.
2 J. AFONSO DA SILVA, Curso de direito constitucional positivo, 20 ed., São Paulo, Malheiros, 2002, p. 240.
3 M. G. FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Saraiva, 19 ed., 1992, p. 225.
II. DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.
II.1. Histórico.
O Direito dos Tratados, cuja construção consuetudinária esteve presente na história das civilizações, é parte fundamental, segundo REZEK, 4 do direito das gentes e apoiava-se sobre os chamados princípios gerais do Direito, tais como a boa-fé e o pacta sunt servanda, o qual zela pela fiel execução das obrigações avençadas.
Segundo o professor Alberto do AMARAL JÚNIOR, os tratados internacionais deram origem a grande parte das normas internacionais existentes, tendo servido, desde a mais remota antiguidade, a diversos fins, tais como a constituição de alianças militares de caráter defensivo, a celebração da paz, o estabelecimento das linhas fronteiriças entre os países e a intensificação do intercâmbio econômico e cultural.5
Ao estudar o Tratado Internacional, REZEK ensina que o registro mais antigo e seguro da celebração de um tratado, naturalmente bilateral, é o acordo de paz celebrado entre Hatusil III, rei dos hititas, e Ramsés II, faraó egípcio. Este acordo, que ficou conhecido como tratado de Kadesh, celebrado por volta de 1280 a 1272 a.C., com objetivo de pôr fim à guerra nas terras sírias, obteve grande sucesso na concretização de sua finalidade.6
No século XX, de acordo com REZEK, 7 houve uma sensível ampliação do acervo normativo dos tratados, que começaram a envolver não mais apenas duas partes (bilaterais), mas várias (multilaterais). Foi a partir do Congresso de Viena de 1815 que se desenvolveram os tratados multilaterais, surgindo uma nova técnica de elaboração dos tratados, que passou, segundo o professor AMARAL, 8 a ter importância decisiva na regulação da vida internacional. Além disso, o quadro de alterações políticas, tais como a multiplicação dos regimes republicanos e a constitucionalização das monarquias, favoreceu o desenvolvimento de maior complexidade dos tratados, como a consulta ao parlamento como preliminar de ratificação, levando à necessidade de remissão ao direito doméstico dos Estados.
4 J. F. REZEK, Direito Internacional Público, 2 ed., Rio de Janeiro, Atual, 1984, p.14.
5 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução ao direito internacional público, 1 ed., São Paulo, Atlas, 2008, pág. 46
6 J. F. REZEK, Direito, p.14.
7 J. F. REZEK, Direito, p.16.
8 Introdução, p.46.
O século XX, marcado pelo aparecimento das organizações internacionais e pela codificação do direito dos tratados, mostrou-se de grande valia ao desenvolvimento desse novo direito. Em lição, o professor Alberto do AMARAL JÚNIOR9 explica que a proliferação das organizações internacionais repercutiu no relacionamento entre os países, assim como afetou a gestão dos interesses globais, colaborando com o surgimento de um novo quadro institucional destinado a facilitar a negociação e o encaminhamento das questões internacionais. Quanto à positivação das normas relativas ao direito dos tratados, podemos dizer que possibilitou a conversão de regras costumeiras em normas escritas e expressas, o que trouxe maior garantia à sua aplicação.
Em 1928, celebrou-se, segundo a doutrina, em Havana, uma Convenção sobre tratados, o que deu estímulo à realização, no âmbito das Nações Unidas, de uma conferência diplomática que negociou uma convenção universal sobre o direito dos tratados, ocorrida em Viena, nos anos de 1968 e de 1969, que teve seu texto ultimado em 1969 e que entrou em vigor em 1980. No entanto, a própria realidade internacional já demonstrava que o direito costumeiro continuaria norteando as questões não tratadas na convenção, considerada, portanto, insuficiente para reger todos os aspectos do direito dos tratados. Em 1986, celebrou-se, então, outra convenção, também em Viena, relativa aos tratados entre Estados e organizações internacionais, ou somente entre as organizações, o que demonstrava uma evolução, já que a Convenção de 1969 somente relacionava-se aos tratados celebrados entre Estados.
Apesar de a Convenção de 1969 não ter sido suficiente para abranger todos os apectos do direito dos tratados, não se pode negar seu importante papel na codificação das regras de direito dos tratados, tal como expressam PELLET e DAILLIER, em sua obra, os quais classificam a Convenção de Viena de 1969 como “o tratado dos tratados”, por tratar-se de um “êxito notável e um exemplo de conciliação bem sucedida entre a codificação pura e simples de regras preexistentes e o seu desenvolvimento progressivo”.10
II.2. Conceito.
O conceito de tratado internacional é pacífico na doutrina, em virtude da antiguidade do tratado como processo de criação das obrigações jurídicas entre Estados.11
9 A. do AMARAL JÚNIOR, A solução de controvérsias na OMC, São Paulo, Atlas, 2008, p. 43.
10 P. DAILLIER, A. PELLET, Direito Internacional Público, Trad. Vítor Marques Coelho, 4 ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p.105.
11 P. DAILLIER, A.PELLET, Direito, p. 107.
Segundo Flávia PIOVESAN, os tratados internacionais, enquanto acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes, constituem a principal fonte de obrigação do Direito Internacional. A jurista ensina que o termo “tratado” é genérico, usado para incluir as Convenções, os Pactos, as Cartas e demais acordos internacionais.12
De acordo com REZEK, tratado é “todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, destinado a produzir efeitos jurídicos.”13 O autor define o tratado como um instrumento identificado por seu processo de produção e por sua forma, não por seu conteúdo, que é variável.
PELLET e DAILLIER ensinam que “o tratado designa qualquer acordo concluído entre dois ou mais sujeitos de direito internacional, destinado a produzir efeitos de direito e regulado pelo direito internacional”. 14
Segundo o professor Alberto do AMARAL JÚNIOR, o tratado é produto do concurso de vontades manifestadas por Estados soberanos, que celebra a mútua concordância sobre a via preferível para a regulação jurídica de um dado complexo fático.15
Para PIOVESAN, os tratados são acordos internacionais celebrados entre sujeitos de Direito Internacional, sendo regulados pelo regime jurídico do Direito Internacional. Apresentam-se, assim, como a expressão do consenso, responsável por criar obrigações legais.16
O artigo 2º, parágrafo 1-a da Convenção de Viena de 1969 define tratado como “um acordo internacional, concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer esteja consignado em um único instrumento, quer em dois ou vários instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação particular”.
Os critérios dessa definição aplicam-se sempre, quaisquer que sejam os sujeitos de direito internacional que figuram como partes nos tratados internacionais. De acordo com a doutrina, a exigência de forma escrita não ignora a existência de acordos verbais, mas confirma que as regras relativas a esses acordos não preservam segurança suficiente para permitir sua positivação. Nesse sentido, o professor AMARAL ressalta que é lógica a obediência à forma escrita como meio de conferir maior segurança e estabilidade às relações entre as partes.17 Além disso, explica que, por tratado, designa-se tanto o conteúdo do acordo, quanto o instrumento que o formaliza, sendo que um mesmo tratado pode compreender dois ou mais instrumentos. Pode-se dizer, ainda, que a Convenção confirma a existência de uma pluralidade de denominações equivalentes, ao dispor que tratado designa um acordo internacional qualquer que seja a sua denominação particular (tratado, convenção, carta, pacto, protocolo, declaração, estatuto, acordo, troca de notas, troca de cartas, entre outros).18
12 F. PIOVESAN, Temas, p. 76.
13 J. F. REZEK, Direito, p. 14.
14 P. DAILLIER, A.PELLET, Direito, p. 107.
15 A. DO AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 47.
16 F. PIOVESAN, Temas, p. 76.
17 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 47.
Nesse contexto, vale ressaltar que o tratado é um acordo formal e que as partes são necessariamente pessoas jurídicas de direito internacional público, isto é, os Estados soberanos e as organizações internacionais.
Importante lembrar que o tratado internacional não deve ser confundido com o gentlemen´s agreement, definido pelo professor Alberto do AMARAL JÚNIOR como o acordo firmado entre chefes de Estado e de governo, de caráter moral, que não dispõe de força jurídica obrigatória e que resulta da confiança mútua entre os pactuantes. Tais atos, assim, segundo o professor, não acarretam obrigações internacionais, mas simplesmente a expectativa de que os participantes agirão em conformidade com as posições expressas, diferentemente do tratado que, como norma internacional, gera efeitos jurídicos indiscutíveis ao criar, modificar ou extinguir direitos entre as partes.19
II.3. Dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Os tratados internacionais de direitos humanos têm como fonte, segundo Flávia PIOVESAN, 20 um campo do Direito extremamente recente, denominado “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, conhecido como Direito do pós-guerra, o qual surgiu, em meados do século XX, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos pelo nazismo. Assim, a autora explica que, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emergiu a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético para orientar a ordem internacional.21
Nesse sentido, os doutrinadores explicam que as inúmeras violações aos direitos humanos cometidos na guerra poderiam ter sido evitadas se houvesse um sistema efetivo de proteção desses direitos.
De acordo com a doutrina, o Direito Internacional dos Direitos Humanos institui deveres e obrigações aos Estados para com todos os seres humanos, refletindo a aceitação geral de que todos os indivíduos têm direitos que devem ser respeitados e protegidos pelos Estados. Por isso, podemos dizer que a proteção dos direitos humanos é de interesse de toda a comunidade internacional e objeto de regulação do Direito Internacional.
18 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 48.
19 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 48.
20 F. PIOVESAN, Temas, p. 78.
21 Temas, p. 30.
Além disso, os estudiosos desse tema reiteram que todas as nações e a comunidade internacional têm o direito e a responsabilidade de exigir que o Estado cumpra suas obrigações e respeite os direitos humanos.
Daí o relevante papel do Direito Internacional dos Direitos Humanos, qual seja, o de implementar os direitos humanos e promover o respeito a esses direitos no âmbito mundial.
Em lição, Flávia PIOVESAN explica que muitos dos direitos que hoje compõem o Direito Internacional dos Direitos Humanos surgiram apenas em 1945, quando as nações do mundo, horrorizadas com as atrocidades cometidas pelo nazismo, relevaram a promoção de direitos humanos e de liberdades fundamentais a um dos principais objetivos da Organização das Nações Unidas.22
Como a proteção dos direitos humanos revelou-se tema de interesse internacional, advieram algumas consequências, segundo a autora, tal como a relativização da soberania absoluta do Estado e a cristalização da idéia segundo a qual os indivíduos são sujeitos de direito internacional.
De acordo com a doutrina, os direitos humanos são caracterizados pela indivisibilidade, já que direitos civis e políticos são conjugados com os econômicos, sociais e culturais, e pela universalidade, porque basta a condição de ser humano para ser titular desses direitos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, Segundo PIOVESAN, 23consagra os direitos humanos como uma unidade interdependente, interrelacionada e indivisível e, a partir de sua aprovação, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção dos direitos fundamentais. Forma-se, assim, um sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no âmbito das Nações Unidas, integrado por pactos internacionais.24
No Brasil, de acordo com a doutrina, somente a partir do processo de democratização, deflagrado em 1985, é que começaram a ser ratificados os tratados internacionais de direitos humanos que, por sua vez, fortaleceram o processo democrático por meio do reforço dos direitos por ele assegurado.
22 Temas, p. 32.
23 Temas, p. 79.
24 Temas, p. 35.
Vale destacar que a Constituição Brasileira de 1988 constitui o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, como ensina PIOVESAN. 25
Importante ressaltar que a jurista descreve um duplo impacto dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, na medida em que, de um lado, consolidam parâmetros protetivos mínimos voltados à defesa da dignidade humana (parâmetros capazes de impulsionar avanços e impedir recuos ou retrocessos no sistema nacional de proteção) e, por outro lado, constituem instância internacional de proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais mostram-se falhas ou omissas.26
Nesse sentido, a doutrina explica que a ação internacional relativa à defesa dos direitos humanos tem sido importante suporte e estímulo para as reformas internas, para a contestação a regimes repressivos e a violações a esses direitos, além de contribuir para a luta pelos direitos fundamentais.
25 Temas, p. 42.
26 F. PIOVESAN, Temas, p. 69.
III. DA HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS.
III.1. Da Hierarquia dos Tratados Internacionais não Relativos a Direitos Humanos. Segundo a doutrina, as transformações mundiais oriundas do processo de globalização e de regionalização, bem como a ascensão do Direito Internacional Público, impulsionaram a conclusão de acordos internacionais, fato que suscitou questões a respeito das relações entre os tratados internacionais e o Direito interno, ou seja, do posicionamento dos tratados diante das leis internas ou locais.
A hierarquia dos tratados internacionais, relevantes instrumentos de materialização da vontade dos Estados e das Organizações Internacionais, perante o ordenamento jurídico interno tem sido tema de discussão entre os juristas, inclusive porque diversas matérias são reguladas, simultaneamente, pelo Direito Internacional Público e pelo Direito interno de cada país.
Os estudiosos ressaltam a existência de duas correntes doutrinárias que buscam solucionar as possíveis controvérsias entre o Direito interno e o Direito Internacional Público, chamadas dualista e monista.
A corrente monista acredita que o Direito Internacional Público e o Direito interno fazem parte de um único sistema jurídico, ou seja, que o Direito é um sistema integrado pelo Direito Interno e pelo Direito Internacional, constituindo um todo harmônico e homogêneo.
Ensina o professor AMARAL que, segundo a tese monista, o tratado internacional prevalece sobre a lei interna, independentemente de considerações de natureza temporal.
Assim, logo que incorporado ao ordenamento jurídico interno, o tratado internacional revoga as leis nacionais contraditórias e, como o Estado tem o dever de cumprir as obrigações assumidas por meio do tratado, caso haja lei pátria posterior incompatível com o acordado, será inválida, de acordo com esse raciocínio. Mais do que isso, segundo o professor AMARAL, 27 os monistas ressaltam que o tratado internacional prevalece sobre a lei interna porque é norma especial, ao passo que a lei estabelece regras gerais de direito comum.
27 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 477.
KELSEN, em 1920, ao dimensionar a questão da soberania nacional perante o Direito Internacional, explicou que os adeptos da perspectiva monista sustentam a unicidade da ordem jurídica, com a integração entre o Direito Interno e o Direito Internacional Público. A doutrina monista, segundo o autor, apresenta duas ramificações: o monismo internacionalista e o monismo racionalista. No primeiro caso, a unicidade se dá sob o primado do Direito Internacional, ao qual se ajustariam todas as ordens jurídicas internas. Já o outro ramo supõe o primado do direito nacional de cada Estado soberano sob cuja ótica a adoção dos preceitos de direito internacional decorre de faculdade discricionária. KELSEN é adepto da visão monista internacionalista.28
A teoria dualista defende que o Direito Internacional Público e o Direito Interno são dois sistemas jurídicos independentes e distintos, sendo que o primeiro regula as relações entre os Estados, e o segundo, as relações entre os indivíduos. Além disso, prega que não há supremacia de um sistema sobre o outro, já que atuam em esferas diferentes e específicas. Assim, para os seguidores dessa teoria, o Direito Interno e o Direito Internacional são dois ordenamentos totalmente separados, seja quanto às fontes (no Direito Interno, há a vontade do Estado; no Direito Internacional, a de vários Estados), seja quanto aos sujeitos (Estados no Direito Internacional; indivíduos e pessoas coletivas no Direito Interno).
De acordo com o professor AMARAL, Amílcar de CASTRO é voz dissonante na doutrina ao defender a separação absoluta entre as ordens jurídicas interna e internacional, não havendo, nessa perspectiva, superioridade do tratado sobre a lei ordinária, já que ambos teriam a mesma posição na hierarquia do ordenamento jurídico brasileiro.29
Para Amílcar de CASTRO, o tratado obriga o povo considerado em bloco, isto é, obriga o governo na ordem externa e não o povo na ordem interna.30
MAGALHÃES critica esse posicionamento ao afirmar que, desde a Carta Constitucional de 1824, os poderes do Estado brasileiro exercem autoridade delegada da nação, sendo absurdo concluir que o Estado, ao se comprometer na esfera internacional, não compromete a nação. Para o autor, ignorar tratados sob o pretexto de que as ordens internacional e interna são independentes e que o Estado, obrigando-se perante os outros países, não está obrigado a observar, na esfera interna, o compromisso soberanamente assumido é ato que não mais se compadece com o mundo atual. Além disso, a Lei Maior não faz distinção entre ordem interna e internacional.31
28 H.KELSEN, Teoria Geral do Direito e do Estado, trad. port, Martins Fontes, UnB, 1990, p. 255.
29 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p.477.
30 A. de CASTRO, Direito Internacional privado, vol. II, Rio de Janeiro, Forense, p. 80.
31 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional – uma análise crítica, Porto
Alegre, Livraria do advogado, 2000, p. 62.
Segundo Flávia PIOVESAN, nos termos do artigo 102, III, “b” da Lei Maior, os tratados internacionais não relativos a direitos humanos, na medida em que buscam o equilíbrio e a reciprocidade de relações entre Estados-partes, têm força hierárquica infraconstitucional, mas supralegal já que, em respeito ao pacta sunt servanda refletido no artigo 27 da Convenção de Viena, não cabe ao Estado invocar disposições de direito interno como justificativa para o não cumprimento de tratado.32
Ensinam os doutrinadores que a Corte Internacional de Justiça já ratificou o entendimento segundo o qual, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado.33
Além disso, ensinam que a Constituição Federal de 1988, tal como os textos constitucionais anteriores, não disciplinou a relação entre o direito interno e o direito internacional. Por isso, essa questão foi objeto de debate em nossos Tribunais.
De acordo com o professor AMARAL, na antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, formada em fins dos anos 40, sobre tratados que versam questões de natureza tarifária, tornou-se vitoriosa a posição de que o tratado, por ser norma especial, afasta a aplicação da lei, que alberga regras gerais. Desse modo, o Supremo declarou que a lei não era apta para alterar tratado internacional.
Consagraram-se, assim, diversos acórdãos reiterando o primado do Direito internacional, como é o caso da União Federal c. Cia Rádio Internacional do Brasil (1951), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que um tratado revogava as leis anteriores (Apelação Cível 9.587). Cite-se, também, um acórdão do STF, em 1914, no Pedido de Extradição 07 de 1913, em que se declarava estar em vigor e aplicável um tratado, apesar de haver uma lei posterior contrária a ele. O acórdão na Apelação Cível 7.872 de 1943, com base no voto de Filadelfo de Azevedo, também afirma que a lei não revoga o tratado. Ainda nesse sentido está a Lei 5.172 de 25.10.1966 que estabelece:
“Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária e serão observados pela que lhe sobrevenha”.
No julgamento do RE n.º 71.154-PR, em 04.08.1971, de que foi relator o Min. Oswaldo Trigueiro, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se a respeito da orientação de vigência e eficácia imediatas, no ordenamento interno brasileiro, dos pactos, tratados e convenções internacionais em geral, de que o Brasil seja signatário. Ressaltou que não era razoável que a validade dos tratados ficasse condicionada à dupla manifestação do Congresso Nacional, exigência que nenhuma das nossas Constituições jamais prescreveu.
32 F. PIOVESAN, Temas, p.82.
33 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 63.
34 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 478.
Na ementa deste mais antigo precedente da Excelsa Corte sobre a matéria, datado Assim, afirmou que não era exigível, além da aprovação do tratado, a edição de um segundo diploma legal específico que reproduzisse as normas modificadoras. 35
de 1971, a tese foi a de que “aprovada a Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna”.36
Na decisão final, o Pleno do STF, adotando o voto do relator, Ministro Oswaldo
Trigueiro, concluiu:
“(…) Em virtude dos preceitos constitucionais anteriores citados, a definitiva aprovação do tratado, pelo Congresso Nacional, revoga as disposições em contrário da legislação ordinária”.37
Assim, havia começado a surgir na Corte Suprema a idéia de paridade hierárquica entre tratados internacionais e leis internas.
Segundo a doutrina, a partir de 1977, passou a vigorar na jurisprudência do STF o sistema paritário, em que o tratado, uma vez formalizado, passa a ter força de lei ordinária podendo, por isso, revogar as disposições em contrário, ou ser revogado diante de lei posterior. Então, de acordo com alguns juristas, o Brasil enquadrou-se num sistema monista moderado, abandonando a antiga tese que apregoava o primado do direito internacional frente ao ordenamento doméstico brasileiro.
Explica Francisco REZEK 38 que, de setembro de 1975 a junho de 1977, estendeu-se, no plenário do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário 80.004.
Tratava-se de controvérsia a respeito da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 427, de 22/01/69, que instituiu a exigência de registro de nota promissória na repartição fiscal, e assim seria incompatível com a Lei Uniforme de Letras de Câmbio e Notas Promissórias, que não prevê essa exigência. A Corte, deixando de lado precedentes e manifestações doutrinárias de que lei não pode modificar tratado em vigor, preferiu ater-se à noção de que não há hierarquia constitucional entre tratado e lei e, sendo assim, um revoga o outro.
35RE n.º 71.154-PR, de 04.08.1971, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, disponível em: http://www.stf.com.br.
36 “LEI UNIFORME SOBRE O CHEQUE, ADOTADA PELA CONVENÇÃO DE GENEBRA. APROVADA ESSA CONVENÇÃO PELO CONGRESSO NACIONAL, E REGULARMENTE PROMULGADA, SUAS NORMAS TEM APLICAÇÃO IMEDIATA, INCLUSIVE NAQUILO EM QUEMODIFICAREM A LEGISLAÇÃO INTERNA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO EPROVIDO.” (RE 71154 / PR – PARANÁ, Relator Min. Oswaldo Trigueiro, Julgamento: 04/08/1971). Disponível em: http://www.stf.com.br.
37 RE 71154 / PR; Relator Min. Oswaldo Trigueiro; Julgamento: 04/08/1971, disponível em:
http://www.stf.com.br.
38 Direito Internacional Público: curso elementar, 6 ed., São Paulo, Saraiva, 1996, p. 106-107.
Portanto, a Corte Suprema decidiu que, em caso de conflito entre lei interna e tratado internacional, predomina a norma mais recente, ainda que o Brasil possa ser responsabilizado na esfera internacional pelo descumprimento do tratado, reiterando, portanto, a paridade hierárquica entre lei e tratado, tal como demonstrado a seguir:
“CONVENÇÃO DE GENEBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSORIAS, AVAL APOSTO A NOTA PROMISSORIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO LEGAL, IMPOSSIBILIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS ORDINARIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI N. 427, DE 22.01.1969. EMBORA A CONVENÇÃO DE GENEBRA QUE PREVIU UMA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS TENHA APLICABILIDADE NO DIREITO INTERNO BRASILEIRO, NÃO SE SOBREPÕE ELA ÀS LEIS DO PAÍS, DISSO DECORRENDO A CONSTITUCIONALIDADE E CONSEQUENTE VALIDADE DO DEC. LEI Nº 427/69, QUE INSTITUI O REGISTRO OBRIGATÓRIO DA NOTA PROMISSÓRIA EM REPARTIÇÃO FAZENDÁRIA, SOB PENA DE NULIDADE DO TÍTULO. SENDO O AVAL UM INSTITUTO DO DIREITO CAMBIÁRIO, INEXISTENTE SERÁ ELE SE RECONHECIDA A NULIDADE DO TÍTULO CAMBIAL A QUE FOI APOSTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.” (RE 80004 / SE, Relator(a): Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Julgamento: 01/06/1977, TRIBUNAL PLENO) (Grifo nosso).
REZEK ressalta que, nesse julgamento, foi assentada, por maioria, a tese segundo a qual, ante a realidade do conflito entre o tratado e lei posterior, esta, porque expressão última da vontade do legislador republicano, deve ter sua prevalência garantida pela Justiça. Tal fato seria, para o jurista, resultante de culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como remediar. Assim, sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado, no plano internacional, admitiram as vozes majoritárias que, faltante na Constituição do Brasil garantia de privilégio hierárquico do tratado internacional sobre as leis do Congresso, era inevitável que a Justiça devesse garantir a autoridade da mais recente das normas, porque paritária sua estatura no ordenamento jurídico.39
39 Direito: curso elementar, p.106-107.
No julgamento, o Ministro Leitão de Abreu apresentou, em seu voto, justificativa diversa, segundo a qual, como o tratado possui forma de revogação própria, não pode ser, em sentido próprio, revogado pela lei. Em caso de lei posterior conflitante, para o Ministro, não se fala em revogação, mas em afastamento da aplicação das normas do tratado com ela incompatíveis.
Compartilhando da mesma posição, André Gonçalves PEREIRA e Fausto de QUADROS, em lição quanto aos tratados em geral, afirmam, não sem hesitações, que o tratado e a lei estão no mesmo nível hierárquico, ou seja, que entre aquele e esta se verifica uma ‘paridade’ – paridade essa que, todavia, funciona a favor da lei. De fato, segundo os doutrinadores, a lei não pode ser afastada por tratado com ela incompatível; mas se ao tratado se suceder uma lei incompatível com ele, essa lei não revoga, em sentido técnico, o tratado, mas ‘afasta sua aplicação’, o que quer dizer que o tratado só se aplicará se e quando aquela lei for revogada.40
Também restou vencido o então Ministro Xavier de Albuquerque, relator, que sustentou dois argumentos: a supremacia dos tratados em relação à legislação interna, com base no art. 98 do CTN, e a necessidade de honrar e respeitar as convenções internacionais, o que retiraria o direito dos países signatários de estabelecerem outros requisitos aos títulos cambiais que não aqueles previstos na Lei Uniforme de Genebra.
Ao analisar o julgado, o doutrinador Celso de ALBUQUERQUE MELLO explica: “No Recurso Extraordinário 80.004, decidido em 1977, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que uma lei revoga o tratado anterior. Esta decisão viola a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969), que não admite o término de tratado por mudança de direito superveniente”.41
Para MAGALHÃES, o STF, ao decidir que tratado revoga lei e que esta revoga tratado, mesmo não tendo sido denunciado, faz incorrer a responsabilidade do Estado brasileiro perante a ordem internacional e os compromissos assumidos pelo país, fazendo coro com decisões de outros países que adotam procedimento similar, mas que, nem por isso, são isentos de críticas. Mesmo na França, ensina o autor, cuja Constituição confere autoridade superior do tratado sobre a lei, a jurisprudência mostra-se hesitante, fazendo prevalecer o tratado sobre leis anteriores, mas não assim relativamente às posteriores.42
40 Manual de Direito Internacional Público, 3 ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 105.
41 C. de ALBUQUERQUE MELLO, Curso de Direito Internacional Público, 11ª ed., vol. II, Rio de Janeiro,
Renovar, 1997, p. 91.
42 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 67.
Essa interpretação, de acordo com o jurista, afronta a delegação conferida pela comunidade internacional ao Estado, que não pode se considerar tenha-o autorizado a deixar de cumprir compromissos internacionais celebrados em seu nome.
Além disso, comentando a referida decisão, José Carlos de MAGALHÃES ressalta que o fato de o tratado obrigar o Estado na ordem internacional e a forma de sua revogação dar-se por meio de denúncia, não sensibilizou o tribunal.43 Afirma o autor que, de acordo com esse entendimento do STF, o país continua obrigado no plano internacional porque há falta de denunciação do tratado o que, no entanto, não impede que o Estado, no plano interno, retire os seus efeitos, não se cogitando, nesse caso, de responsabilidade internacional.
Nas palavras de Flávia PIOVESAN: “Acredita-se que o entendimento firmado a partir do julgamento do Recurso Extraordinário 80.004 enseja, de fato, um aspecto crítico, que é a sua indiferença às conseqüências do descumprimento do tratado no plano internacional, na medida em que autoriza um Estado-parte a violar dispositivos da ordem internacional, os quais se comprometeu a cumprir de boa-fé. Esta posição afronta, ademais, o disposto pelo artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que determina não poder o Estado-parte invocar posteriormente disposições de direito interno como justificativa para o não cumprimento de tratado. Tal dispositivo reitera a importância, na esfera internacional, do princípio da boa-fé, pelo qual cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições de tratado, com o qual livremente consentiu. Ora, se o Estado, no livre e pleno exercício de sua soberania, ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar seu cumprimento. Além disso, o término de um tratado está submetido à disciplina da denúncia, ato unilateral do Estado pelo qual manifesta seu desejo de deixar de ser parte de um tratado. Vale dizer, em face do regime de direito internacional, apenas o ato da denúncia implica a retirada do Estado de determinado tratado internacional. Assim, na hipótese de inexistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade do Estado na ordem internacional”.44
Assim, para muitos juristas, a doutrina da Excelsa Corte referente à paridade normativa entre leis internas e tratados internacionais pecava pela imprecisão, já que admitir que um compromisso internacional perde vigência em virtude da edição de lei
posterior que com ele conflite é permitir que um tratado pode, unilateralmente, ser revogado por um dos Estados-parte, o que não é permitido e tampouco compreensível.45
43 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p.68.
44 Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 4 ed. rev., ampl. e atual, São Paulo, Max Limonad, 2000, p. 83-84.
No mesmo sentido, Mirtô FRAGA explica que o objetivo de um tratado internacional é o de justamente incidir sobre situações que deverão ser observadas no plano interno dos Estados signatários. Assim, aprovando um tratado internacional, o Poder Legislativo se compromete a não editar leis a ele contrárias, sendo que, se o fizer, sera configurado um ilícito internacional.46 E continua: “É um contra-senso afirmar-se que o Tribunal deve aplicar a lei posterior contrária ao tratado e admitir-se, ao mesmo tempo, a responsabilidade do Estado. Este é livre para contratar ou deixar de contratar. Afirmar, como muitos, que o Poder Executivo não pode, pela celebração do tratado, limitar a competência e a liberdade do poder Legislativo seria válido se ocorresse no século XVIII.
O monarca, então, personalizava o Estado e a soberania residia na pessoa do governante. Com o advento da Revolução Francesa e das idéias liberais, a soberania foi transladada para a nação, representada nas Assembléias. O pacto, o ajuste, era, então, um ato do governante, em oposição à lei, ato da soberania nacional. E como o poder pertencia ao povo, o compromisso firmado pelo soberano não podia obrigar a nação, à qual era permitido dispor de forma contrária ao pactuado, em seu nome e sem sua audiência. A manifestação obrigatória do Poder Legislativo sobre os tratados assinados pelo Chefe de Estado surgiu, justamente, como resultado da democratização do poder. Na época atual, admitir-se possa o Legislativo, por lei, contrariar o tratado que aprovou é, em suma, reconhecer o predomínio das Assembléias, em franca oposição ao dispositivo constitucional que declara harmônicos e independentes os Poderes do Estado, se não há, para tanto, expressa autorização da Lei Maior”. 47
Segundo a doutrina, esse argumento tem respaldo na teoria do “venire contra factum proprium non valet”, pois, se nem mesmo o Estado pode atuar contra seus próprios atos anteriores, cabe reconhecer que se o Congresso, pela via ordinária, edita leis contrárias às disposições de tratados anteriormente assumidos, está atuando em oposição à conduta que teve anteriormente de permitir o ingresso de tal instrumento no ordenamento nacional, agindo, por conseguinte, com má-fé internacional, ato inadmissível aos olhos do direito das gentes.
45 V. de O. MAZZUOLI, Direitos Humanos & Relações Internacionais, Campinas, Agá Juris, 2000, p. 148 e ss.
46 M. FRAGA, O Conflito entre Tratado Internacional e Norma de Direito Interno: estudo analítico da situação do tratado na ordem jurídica brasileira, Rio de Janeiro, Forense, 1998, p. 83.
47 M. FRAGA, O conflito, p. 83-84.
Num importante julgamento de medida cautelar na ADI n° 1.480-3/DF, em 04/09/97, posterirormente, portanto, à Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal novamente decidiu pela paridade hierárquica entre leis ordinárias e tratados internacionais, tal como expressa a seguinte passagem do Relator, Min. Celso de Mello:
“É na Constituição da República -e não na controvérsia doutrinária que antagonize monistas e dualistas -que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe -enquanto Chefe de Estado que é -da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais -superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressional e da ratificação pelo Chefe de Estado -conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes.
SUBORDINAÇÃO NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política. O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro, não obstante o polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional), está sujeito à necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional.
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS INTERNACIONAIS NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO. – O Poder Judiciário fundado na supremacia da Constituição da República -dispõe de competência para, quer em sede de fiscalização abstrata, quer no âmbito do controle difuso, efetuar o exame de constitucionalidade dos tratados ou convenções internacionais já incorporados ao sistema de direito positivo interno. Doutrina e Jurisprudência.
PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO. Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior derogat priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade. Precedentes.
TRATADO INTERNACIONAL E RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR. O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público. Os tratados internacionais celebrados pelo Brasil, ou aos quais o Brasil venha a aderir, não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar. É que, em tal situação, a própria Carta Política subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo da lei complementar, que não pode ser substituída por qualquer outra espécie normativa infraconstitucional, inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao direito positivo interno.”48 (grifo nosso).
48“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -CONVENÇÃO Nº 158/OIT -PROTEÇÃO DO TRABALHADOR CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA -ARGÜIÇÃO DE ILEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS ATOS QUE INCORPORARAM ESSA CONVENÇÃO INTERNACIONAL AO DIREITO POSITIVO INTERNO DO BRASIL (DECRETO LEGISLATIVO Nº 68/92 E DECRETO Nº 1.855/96) -POSSIBILIDADE DE CONTROLE ABSTRATO DE INSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA -ALEGADA TRANSGRESSÃO AO ART. 7º, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E AO ART. 10, I DO ADCT/88 -REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA PROTEÇÃO CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA,POSTA SOB RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR -CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE TRATADO OU CONVENÇÃO INTERNACIONAL ATUAR COMO SUCEDÂNEO DA LEI COMPLEMENTAR EXIGIDA PELA CONSTITUIÇÃO (CF, ART. 7º, I) CONSAGRAÇÃO CONSTITUCIONAL DA GARANTIA DE INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA COMO EXPRESSÃO DA REAÇÃO ESTATAL À DEMISSÃO ARBITRÁRIA DO TRABALHADOR
Nesse julgamento, o fundamento adotado pela Corte Suprema para manter a paridade normativa entre os tratados e as leis ordinárias foi o principio da supremacia das normas constitucionais, tendo sido invocada a previsão expressa de controle de constitucionalidade dessas normas, de acordo com o disposto no art. 102, III, b da Constituição, in verbis:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
(…)
III. julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
(…)
b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”.
Nesse sentido, alguns doutrinadores defendem que, em virtude da previsão estabelecida no art. 102, III, b, da Carta de 1988, há uma igualdade de hierarquia dos tratados internacionais e das leis ordinárias internas. Desta feita, em caso de conflito entre a norma internacional e a lei interna, deve-se aplicar o princípio geral relativo às normas de idêntico valor, isto é, o critério cronológico, segundo o qual a norma mais recente revoga a anterior que com ela conflite.
Assim, o fato de a Constituição incorporar ao direito interno as normas provenientes do direito internacional não significa que o Corpo Legislativo fique impedido de editar novas leis contrárias ao disposto nos tratados. Segundo a doutrina, o único efeito de recepção do direito internacional no quadro do direito interno é dar força de lei às normas jurídicas assim incorporadas à legislação. Nesse caso, os tratados valerão como lei e, nessa qualidade, serão aplicados pelos Tribunais, da mesma maneira, na mesma extensão e com a mesma obrigatoriedade própria à aplicação do direito interno.49
(CF, ART. 7º, I, C/C O ART. 10, I DO ADCT/88) -CONTEÚDO PROGRAMÁTICO DA CONVENÇÃO Nº 158/OIT, CUJA APLICABILIDADE DEPENDE DA AÇÃO NORMATIVA DO LEGISLADOR INTERNO DE CADA PAÍS -POSSIBILIDADE DE ADEQUAÇÃO DAS DIRETRIZES CONSTANTES NA CONVENÇÃO Nº 158/OIT ÀS EXIGÊNCIAS FORMAIS E MATERIAIS DO ESTATUTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO -PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR DEFERIDO, EM PARTE, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES
INTERNACIONAIS.”(ADI-MC 1480/DF, Relator Min. Celso de Mello, Julgamento: 04/09/1997, Tribunal Pleno, Publicação DJ 8-05-2001).
49 F. CAMPOS, Imposto de vendas e consignações – Incidência em sobretaxas cambiais – Ágios e bonificações – Acordos internacionais sobre paridade cambial, in Revista de Direito Administrativo, v. 47, 1957, p. 452-458
Nos dezeres do Ministro CELSO DE MELLO, “os atos internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se no mesmo plano de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. Essa visão do tema foi prestigiada em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE nº 80.004-SE (RTJ 83/809, Rel. p/ o acórdão Min. Cunha Peixoto), quando se consagrou, entre nós, a tese -até hoje prevalecente na jurisprudência da Corte (e reiterada no julgamento da ADI nº 1.480-DF, Rel. Min. Celso de Mello) -de que existe, entre tratados internacionais e leis internas brasileiras, de caráter ordinário, mera relação de paridade normativa”. 50
Ressaltou, ainda, o Ministro: “(…) A eventual precedência dos atos internacionais sobre as normas infraconstitucionais de direito interno somente ocorrerá, presente o contexto de eventual situação de antinomia com o ordenamento doméstico, não em virtude de uma inexistente primazia hierárquica, mas, sempre, em face da aplicação do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade”.51
Seguindo o entendimento da Suprema Corte nos casos abordados, alguns juristas, tal como Francisco REZEK, defendem que, em caso de incompatibilidade de tratado internacional com a Constituição, prevalece a última. Para REZEK, não há dúvidas de que a Lei Maior sobrepõe-se ao “pacta sunt servanda”, ainda que seja configurado um ilícito no plano internacional.52
Entretanto, nesse caso, MAGALHÃES ressalta que o Estado é uno e a lei que revoga tratado viola obrigação internacional assumida pelo Estado, acarretando-lhe a responsabilidade internacional. Da mesma maneira, ensina o autor, a decisão judicial que deixa de dar aplicação a tratado regularmente ratificado pelo país, também gera a responsabilidade internacional do Estado e das autoridades responsáveis pela violação, já que o governo compromete a nação como um todo, pois a representa.53
Ainda em defesa da tese relativa à paridade normativa entre lei interna e tratado internacional, alguns doutrinadores ensinam que se pode alegar que o artigo 59 da Constituição, o qual estabelece o processo legislativo, não cogita do tratado, deixando-o excluído do rol de instrumentos legislativos estabelecidos pela Lei Maior, o que demonstra que o tratado não possui hierarquia superior à lei.
50 Carta Rogatória n. 8.279-4 da República da Argentina, Min. Celso Mello, Informativo n. 109 do STF, grifos no original.
51 RTJ 70/333; RTJ 100/1030; RT 554/434.
52 J. F. REZEK, Direito: curso elementar, p. 103.
53 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 60.
No entanto, MAGALHÃES refuta essa tese ao explicar que o tratado possui caráter internacional e sua criação ou extinção são feitos de acordo com o Direito Internacional, exatamente por envolver mais de um Estado. Dessa maneira, segundo o autor, a alegação de que o tratado não integra o rol do artigo 59 da Constituição e, assim, não possui hierarquia superior à lei desconsidera o fato de que tal processo é exclusivamente de direito interno, não dispondo, até mesmo, sobre o processo de ratificação dos tratados, como poderia ter previsto.54
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 58.736-MG, decidiu que: “O Tratado não se revoga com edição de lei que contrarie norma nele contida. Rege-se pelo Direito Internacional e o Brasil a seus termos continuará vinculado até que se desligue mediante os mecanismos próprios. Entretanto, perde eficácia quanto ao ponto em que exista a antimonia. Internamente prevalecerá a norma legal que lhe seja posterior. Ocorre que, tendo em vista a sucessão temporal das normas, para saber qual a prevalecente aplicam-se os princípios pertinentes que se acham consagrados na Lei de Introdução ao Código Civil. No caso, o estabelecido pela Convenção constitui lei especial, que não se afasta pela edição de outra, de caráter geral. As normas convivem, continuando as relações de que cuida a especial a serem por ela regidas. E não há dúvida alguma sobre o cunho de generalidade das regras contidas nos artigos invocados do Código de Defesa do Consumidor.”
Ressalte-se que, para MAGALHÃES, essa orientação do STJ é mais cautelosa e moderada do que a adotada pelo STF.55
Em outro julgado, o STJ determinou que: “O tratado internacional situa-se formalmente no mesmo nível hierárquico da lei, a ela se equiparando. A prevalência de um ou outro se regula pela sucessão no tempo. ”56
Dessa maneira, percebemos que há divergência entre os doutrinadores a respeito da hierarquia entre os tratados internacionais não relativos a direitos humanos e as leis nacionais. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, apesar de sua mudança de posicionamento no decorrer da história, em suas mais recentes decisões, pronunciou-se à favor da paridade hierárquica entre esses diplomas normativos.
54 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 66.
55 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p.68.
56 STJ, 3ª T., REsp 74.736/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 226, de 27/11/95, p. 40.887.
III.2. Da Hierarquia dos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.
De acordo com estudiosos, até a segunda metade do século XX, os tratados internacionais abrangiam um âmbito de aplicação diverso das matérias tratadas pelas Constituições nacionais. A partir desse período, tratados e constituições passaram a cuidar de matérias coincidentes, como a relativa aos direitos humanos. Os tratados internacionais começaram a abranger, de forma crescente, áreas antes reguladas exclusivamente pelas constituições nacionais ao estabelecerem, por exemplo, normas de direitos fundamentais ou ao criarem organizações internacionais dotadas de poderes tradicionalmente exercidos pelo Estado soberano, ressaltando-se, nesse mister, a União Européia. Nesse sentido, podemos dizer que Constituições nacionais e tratados internacionais passaram, então, a regular matérias comuns.
Esse fato, aliado à multiplicação de acordos celebrados no âmbito internacional, suscita a questão de conflitos entre normas constitucionais e provisões de tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados pelos ordenamentos jurídicos nacionais.
Segundo PIOVESAN, os tratados internacionais de direitos humanos podem contribuir de forma decisiva para o reforço da promoção dos direitos humanos no Brasil. No entanto, o sucesso da aplicação desse instrumento internacional de direitos humanos requer a ampla sensibilização dos agentes operadores do Direito, no que se atém à relevância e à utilidade de advogar esses tratados perante as instâncias nacionais e internacionais. Além disso, a autora explica que, a partir da Constituição de 1988, intensifica-se a interação e conjugação do Direito Internacional e do Direito Interno, que fortalecem a sistemática de proteção dos direitos fundamentais, com uma principiologia e lógica próprias, fundadas no princípio da primazia dos direitos humanos.
Testemunha-se, assim, o processo de internacionalização do Direito Constitucional somado ao processo de constitucionalização do Direito Internacional.57
Os estudiosos do tema explicam que a rede de proteção dos direitos humanos internacionais busca redefinir o que é matéria de exclusiva jurisdição doméstica dos Estados. Ensinam, também, que o processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos, tratando-se de transpor e adaptar ao Direito Internacional a evolução que já havia ocorrido no Direito Interno, no início do século, pela passagem do Estado-Polícia para o Estado-Providência. Do mesmo modo, o Direito Internacional abandonou a faseclássica (Direito da Paz e da Guerra) e alcançou a era moderna, caracterizando-se como Direito Internacional da Cooperação e da Solidariedade.
57 F. PIOVESAN, Temas, p. 57.
De acordo com PIOVESAN, o sistema internacional de proteção dos direitos humanos apresenta instrumentos de âmbito global e regional, como também de âmbito geral e específico, sistemas que se complementam e interagem com o sistema nacional de proteção dos direitos fundamentais, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção desses direitos.58
Em lição, Alexandre de MORAES explica que os direitos humanos fundamentais apresentam-se a partir de diversas fontes, com diferentes hierarquias, seja em nível internacional, seja em nível interno, sendo que algumas têm caráter obrigatório, enquanto outras, não e, ainda mais, segundo o próprio conteúdo, algumas são genéricas e outras, específicas. Para o jurista, essa variedade acaba, por vezes, gerando dificuldades interpretativas na análise da aplicabilidade dos direitos e garantias fundamentais.59
Surge, então, na doutrina e na jurisprudência, controvérsia a respeito da hierarquia das normas estabelecidas nos tratados internacionais sobre direitos humanos, devendo ser ressaltado que um posicionamento jurisprudencial vinculado à supremacia incondicional da Constituição pode levar o Estado a responder por violações de normas oriundas de tratados internacionais que, como já explicado, são acordos formais que dão origem a efeitos jurídicos indiscutíveis ao modificar, criar ou extinguir direitos entre as partes.
Destaca-se que, para o professor Alexandre de MORAES, 60 o conflito entre fontes internacionais e fontes nacionais deve ser resolvido pelo Direito Constitucional de cada um dos países, em virtude do princípio da soberania estatal.
De acordo com a doutrina, no Brasil, há quatro correntes doutrinárias acerca da hierarquia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que sustentam: a hierarquia supraconstitucional desses tratados; a hierarquia constitucional; a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; a paridade hierárquica entre tratado e Lei Federal.
58 F. PIOVESAN, Temas, p. 61.
59 A. de MORAES, Direitos Humanos Fundamentais – Teoria Geral, 7 ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 316.
60 A. de MORAES, Direitos, p. 317.
Hildebrando ACCIOLY defende a tese segundo a qual o art. 5°, §2° da Lei Maior deve ser interpretado no sentido de que, ainda que implicitamente, concede um grau supraconstitucional a todo Direito Internacional dos Direitos Humanos, tanto de fonte consuetudinária, como convencional. A expressão “não excluem”, segundo essa tese, não pode ter um alcance meramente quantitativo e pretende significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito Internacional em matéria de direitos fundamentais, deve prevalecer o último. Nesse sentido, o jurista argumenta: “É lícito sustentar-se, de acordo, aliás, com a opinião da maioria dos internacionalistas contemporâneos, que o direito internacional é superior ao Estado, tem supremacia sobre o direito interno, por isto que deriva de um princípio superior à vontade dos Estados. Não se dirá que o poder do Estado seja uma delegação do direito internacional, mas parece incontestável que este constitui um limite jurídico ao dito poder. Realmente, se é verdade que uma lei interna revoga outra ou outras anteriores, contrárias à primeira, o mesmo não se poderá dizer quando a lei anterior representa direito convencional transformado em direito interno, porque o Estado tem o dever de respeitar suas obrigações contratuais e não as pode revogar unilateralmente. Daí poder dizer-se que, na legislação interna, os tratados ou convenções a ela incorporados formam um direito especial que a lei interna, comum, não pode revogar. Daí também a razão por que a Corte Permanente de Justiça Internacional, em parecer consultivo proferido em 31 de julho de 1930, declarou: ‘É princípio geralmente reconhecido do direito internacional que, nas relações entre potências contratantes de um tratado, as disposições de uma lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado”. 61
No mesmo sentido, leciona MAROTTA RANGEL: “A superioridade do tratado em relação às normas do Direito interno é consagrada pela jurisprudência internacional e tem por fundamento a noção de unidade e solidariedade do gênero humano e deflui normalmente de princípios jurídicos fundamentais, tal como o pacta sunt servanda e o voluntas civitatis maximae est servanda”. 62
61 H. ACCIOLY in F. PIOVESAN, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 4 ed,. São Paulo, Max Limonade, 2000.
62 V. MAROTTA RANGEL, Os conflitos entre o Direito Interno e os Tratados Internacionais, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, vol. 62, nº 2, 1967, p. 81-134.
Flávia PIOVESAN defende que, por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º, a Carta de 1988 atribui aos direitos humanos enunciados em tratados internacionais a hierarquia de norma constitucional, incluindo-os no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos, que apresentam aplicabilidade imediata. A autora explica que essa opção do constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina, da superioridade desses tratados no plano internacional, tendo em vista que integrariam o chamado jus cogens (direito cogente e inderrogável) e, mais do que isso, tendo em vista que transcendem os meros compromissos recíprocos, objetivando a salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados.63
Assim, segundo Flávia PIOVESAN, o Direito brasileiro faz opção por um sistema misto, que combina um regime aplicável aos tratados de direitos humanos que, por força do artigo 5º, §§ 1º e 2º/ CF apresentam hierarquia de norma constitucional e aplicação imediata, e outro aplicável aos tratados tradicionais, de hierarquia infraconstitucional e submetidos à sistemática da incorporação legislativa. Desse modo, os tratados de direitos humanos irradiam efeitos concomitantemente na ordem nacional e internacional a partir do ato da ratificação.64
Vale destacar que, de acordo com a autora, a dignidade humana e os direitos fundamentais servem, na Constituição de 1988, como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional e é nesse contexto que há de se interpretar o disposto no artigo 5º,§ 2 da Lei Maior, o qual tece a interação entre o Direito brasileiro e os tratados internacionais de direitos humanos. À luz desse dispositivo constitucional, segundo Piovesan, os direitos fundamentais podem ser divididos em três distintos grupos, quais sejam: direitos expressos na Constituição; direitos implícitos, decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Carta Constitucional; direitos expressos nos Tratados Internacionais subscritos pelo Brasil. Nesse sentido, para a jurista, a Constituição inova ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.65
Assim, Flávia PIOVESAN explica que, ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a de norma constitucional, conclusão advinda, segundo a autora, de um interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. Essa conclusão também decorre do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais referentes a direitos e garantias fundamentais, da natureza materialmente constitucional dos direitos fundamentais e do processo de globalização, que propicia e estimula a abertura da Constituição à normação internacional.66
63 Temas, p.46.
64 Temas, p.51.
65 Temas, p.44.
66 Temas, p.46.
Da mesma maneira que PIOVESAN, outros doutrinadores entendem que a Constituição de 1988, em seu art. 5, §2º, confere aos tratados de proteção dos direitos humanos o status de norma constitucional. Nesse sentido, Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE, no prefácio escrito na obra de George Galindo, explica: “A disposição do artigo 5º, §2º, da Constituição Brasileira vigente, de 1988, segundo a qual os direitos e garantias nesta expressos não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais de que o Brasil é parte, representa, a meu ver, um grande avanço para a proteção dos direitos humanos em nosso país. Por meio deste dispositivo constitucional, os direitos consagrados em tratados de direitos humanos de que o Brasil seja Parte incorporam-se ‘ipso jure’ ao elenco dos direitos constitucionalmente consagrados. (…) O referido artigo 5º, §2º, de nossa Constituição Federal, resultou de proposta que apresentei, na época, como Consultor Jurídico do Itamaraty, à Assembléia Nacional Constituinte, em audiência pública no dia 29 de abril de 1987, tal como consta das Atas das Comissões da Assembléia Nacional Constituinte. (…) O propósito do disposto nos §§2º e 1º do artigo 5º da Constituição Federal não é outro que o de assegurar a aplicabilidade direta pelo Poder Judiciário nacional da normativa internacional de proteção, alçada em nível constitucional”. 67
Ensina, ainda, o doutrinador: “É alentador que as conquistas do direito internacional em favor da proteção do ser humano venham a projetar-se no direito constitucional, enriquecendo-o e demonstrando que a busca de proteção cada vez mais eficaz da pessoa humana encontra guarida nas raízes do pensamento, tanto internacionalista quanto constitucionalista”.68
Fernando Luiz Ximenes ROCHA segue o mesmo posicionamento, e ressalta:”posição feliz do nosso constituinte de 1988, ao consagrar que os direitos garantidos nos tratados de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte recebem tratamento especial, inserindo-se no elenco dos direitos constitucionais fundamentais, tendo aplicação imediata no âmbito interno, a teor do disposto nos §º1 e §2º do art. 5º da Constituição Federal”.69
O constitucionalista José Joaquim Gomes CANOTILHO se orienta na mesma direção ao ponderar: “As constituições, embora continuem a ser pontos de legitimação, 67 G. R. B. GALINDO, Tratados Internacionais de Direitos Humanos e Constituição Brasileira, Belo Horizonte, Del Rey, 2002, prefácio de A. A. CANÇADO TRINDADE, p. XX-XXIII.
68 A. A. CANÇADO TRINDADE, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos – fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, São Paulo, Saraiva, 1991, p. 631.
69 F. L. X ROCHA, A Incorporação dos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos no Direito Brasileiro, in Revista de Informação Legislativa, Brasília-DF, Senado Federal, a. 33, n. 130, p. 81, 1996.
legitimidade e consenso auto-centrados numa comunidade estadualmente organizada, devem abrir-se progressivamente a uma rede cooperativa de metanormas (‘estratégias internacionais’, pressões concertadas’) e de normas oriundas de outros ‘centros’ transnacionais (regionais e locais) ou de ordens institucionais intermediárias (‘associações internacionais’, programas internacionais’). A globalização internacional dos problemas (direitos humanos, proteção de recursos, ambiente) aí está a demonstrar que, se a constituição jurídica do centro estadual, territorialmente delimitado, continua a ser uma carta de identidade política e cultural e uma mediação normativa necessária de estruturas básicas de justiça de um Estado-Nação, cada vez mais ela se deve articular com outros direitos, mais ou menos vinculante e preceptivos (hard law), ou mais ou menos flexíveis (soft law), progressivamente forjados por novas ‘ unidades políticas’ (‘cidade-mundo’, ‘Europa comunitária’, ‘ casa européia’, ‘unidade africana’). Neste raciocínio, a abertura à normação internacional passa a ser elemento caracterizador da ordem constitucional contemporânea”.70
Segundo José Carlos de MAGALHÃES, tratado celebrado pelo país versando sobre direitos humanos não pode ser revogado por lei posterior, diante não apenas das normas imperativas de direito internacional, mas, sobretudo, em face do preceito constitucional inscrito no § 2º do artigo 5º da Constituição Federal. Para o autor, a Constituição, nesse dispositivo, não menciona a lei, mas os direitos e garantias por ela, Constituição, assegurados, ou por tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Há, assim, de acordo com Magalhães, verdadeira equiparação entre a Lei Maior e os tratados e, dessa forma, se a Constituição não previu certos direitos e garantias, contemplados em tratados firmados pelo Brasil, tais direitos e garantias se sobrepõem às leis que não os reconheçam, por força da própria Constituição. Assim, o autor ensina que a lei não pode revogar tratado internacional que assegure direito ou garantia fundamental, diante da equiparação constitucional estabelecida pela própria Lei Maior.71
Além disso, MAGALHÃES afirma que a Constituição estipulou, no artigo 4º, II, a prevalência dos direitos humanos como um dos princípios da República, o que demonstra que, havendo conflito entre lei interna e norma de direito internacional geral sobre direitos humanos, esta há de prevalecer por determinação constitucional.72
70 J. J. G. CANOTILHO, Direito Constitucional, 6 ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 18.
71 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 65.
72 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 65.
Essa posição foi defendida na seara jurisprudencial pela Desembargadora Federal Margarida CANTARELLI, no julgamento proferido por unanimidade pela Primeira Turma do TRF-5ª Região, na AC 238.842-RN (2000.05.00.057989-2), julgado em 30/08/2001, quando a relatora afirmou que: “Não poderia deixar de mencionar que os princípios acima elencados estão presentes em diversos tratados internacionais sobre direitos humanos dos quais o Brasil é parte, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU – 1966), a Convenção Americana de Direitos Humanos (São José, 1969), ambos em vigor entre nós, desde 1992. Estes e muitos outros textos internacionais estão, nos termos da própria Constituição, à mesma equiparados, na melhor interpretação dada ao §2º do seu art. 5º.”73 (grifo nosso).
Importante ressaltar, também, o artigo 4º, IX da Lei Maior, segundo o qual a República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelo princípio, dentre outros, da cooperação entre os povos, que se faz, segundo MAGALHÃES, sobretudo por meio de tratados e acordos internacionais os quais obrigam o Estado, na ordem interna e internacional, a firmá-los e ratificá-los.74
Há de ser destacado que, segundo Flávia PIOVESAN, um exame mais cauteloso da matéria aponta a um critério de solução diferenciado e absolutamente peculiar, que se situa no plano dos direitos fundamentais, orientando-se pela escolha da norma mais favorável à vítima, ou seja, prevalece a norma mais benéfica ao indivíduo, titular do direito. O princípio da aplicação do dispositivo mais favorável à vítima, segundo a autora, é consagrado pelos próprios tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, mas também encontra apoio na prática ou jurisprudência dos órgãos de supervisão internacionais. Isto é, no plano de proteção dos direitos humanos interagem o Direito internacional e o Direito interno, movidos pelas mesmas necessidades de proteção, prevalecendo as normas que melhor protejam o ser humano, tendo em vista que a primazia é da pessoa humana.75
No mesmo sentido, Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE ensina que devemos nos desvencilhar das amarras da velha e ociosa polêmica entre monistas e dualistas, já que, no campo de proteção relativo aos direitos humanos, não se trata de primazia do direito internacional ou do direito interno, aqui em constante interação. A primazia é, no presente unânime. Relatora: Desembargadora Federal Margarida Cantarelli. Origem: 5ª Vara Federal-RN. Recife, 30 de agosto de 2001. Disponível em: http://www.trf5.gov.br/archive/2002/03/200005000579892_20020313.pdf>. Acessado em: 11 Mai. 2009.
73 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível nº 238.842-RN. Primeira Turma. Decisão
74 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 65.
75 F. PIOVESAN, Temas, p. 51-52.
domínio, da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos consagrados da pessoa humana, seja ela uma norma de direito internacional ou de direito interno.76
Dessa maneira, seguindo esse critério, em caso de conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Interno, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana. A tarefa de escolha da norma mais benéfica ao indivíduo caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano, segundo os doutrinadores.
Seguindo outro entendimento, o professor Alexandre de MORAES explica que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros de caráter constitucional decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, desde que expressamente previstos no texto constitucional, mesmo que difusamente.77
Ressalta o professor que a Constituição Federal não exclui a existência de outros direitos e garantias individuais, de caráter infraconstitucional, decorrente dos atos e tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte.78
Assim, Alexandre de MORAES entende que os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte têm hierarquia infraconstitucional, sendo que eventuais conflitos entre os dispositivos desses tratados e as leis nacionais ordinárias devem ser resolvidos pelo critério cronológico (norma posterior revoga a anterior) ou pelo princípio da especialidade.79
Em 1995, no Habeas Corpus 72.131, que tratava da prisão civil do depositário infiel na alienação fiduciária em garantia, o Supremo Tribunal Federal entendeu que uma lei interna revoga o tratado anterior, resolvendo-se o conflito entre as legislações pelo critério cronológico e da especialidade. Nesse julgamento, foi debatida a antinomia existente entre a Constituição Federal, no seu art. 5º, inciso LXVII que permite a prisão civil por dívida do depositário infiel, enquanto que o art. 7º, VII do Pacto de São José da Costa Rica proíbe todas as formas de prisão por dívida, salvo no caso do devedor de alimentos.80
76A. A. CANÇADO TRINDADE, A Proteção dos Direitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional:
perspectivas brasileiras, San José da Costa Rica/Brasília, Instituto Interamericano de Derechos Humanos,
1992, p. 317-318 apud F. PIOVESAN, Temas.
77 A. de MORAES, Direitos, p. 308.
78 A. de MORAES, Direitos, p. 310.
79 A. de MORAES, Direitos, p. 318.
80 “”Habeas corpus”. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. – Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva.
Trata-se de uma tese seguida por alguns doutrinadores e setores em nossa prática judiciária, a qual, para Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE, não só representa um apego sem reflexão a uma postura anacrônica, já abandonada em vários países, mas também contraria o disposto no artigo 5º, §2º, da Constituição Federal brasileira. O autor, no prefácio escrito na obra de George GALINDO, explica: “O problema – permito-me insistir – não reside na referida disposição constitucional, a meu ver, claríssima em seu texto e propósito, mas sim na falta de vontade de setores do Poder Judiciário de dar aplicação direta, no plano de nosso direito interno, às normas internacionais de proteção dos direitos humanos que vinculam o Brasil. Não se trata de problema de direito, senão de vontade (animus).” 81
O professor Antonio Augusto CANÇADO TRINDADE, ainda, em prefácio à obra Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, cuida do tema ‘direito internacional e direito interno e sua integração na proteção aos direitos humanos’. Ao tartar sobre a ordem constitucional brasileira, afirma que a Constituição de 1988, após proclamar que o Brasil rege-se em suas relações internacionais pelo princípio, entre outros, da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II), constituindo-se em Estado Democrático de Direito, tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), estatui que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º,§ 2º). E acrescenta que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º,§ 1º).82
Conclui o jurista que o disposto no art. 5º, § 2º, da Lei Maior brasileira, insere-se na nova tendência das constituições latino-americanas recentes, de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados. Além disso, afirma, lembremos, num momento anterior à Emenda constitucional 45/2004, que a especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com contida na parte final do artigo 5º, LXVII, da Constituição de 1988. -Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º do artigo 7º da Convenção de San José da Costa Rica. “Habeas corpus” indeferido, cassada a liminar concedida.” (HC 72131 / RJ, Relator Min.
MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão Min. MOREIRA ALVES, Julgamento: 23/11/1995, Tribunal Pleno).
81 G. R. B. GALINDO, Tratados, prefácio de A. A. CANÇADO TRINDADE, p. XX-XXIII.
82 A. A. CANÇADO TRINDADE, Direito Internacional e Direito Interno: sua interpretação na proteção dos direitos humanos in Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, obra que o autor prefacia. São Paulo, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996, p.20. efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, tem-se exigido intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei, de modo a outorgar às suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente, no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante o art. 5º, § 1º e § 2º da Constituição de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.8
Ressalta-se que para estudarmos a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, é essencial tratarmos da Emenda Constitucional nº 45/2004, a qual trouxe dispositivo inovador a respeito do tema.
III.2.1. Da Emenda Constitucional Nº 45/2004.
Os doutrinadores ensinam que, no sentido de responder à polêmica doutrinária e jurisprudencial concernente à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, introduziu um § 3º no artigo 5º, o qual estipula que: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Assim, o parágrafo acrescido pela emenda nº 45 prescreveu que os tratados internacionais de direitos humanos que seguirem esse “iter” específico de aprovação, terão hierarquia constitucional.
No entanto, para Flávia PIOVESAN, a hierarquia constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos já se extrai do artigo 5º, § 2º, da Constituição de 1988, pelo qual todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais. O quorum qualificado, estipulado pelo § 3º do art. 5º da Constituição Federal, segundo a jurista, está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno.84
83 A. A. CANÇADO TRINDADE, Direito, p. 21.
84 Temas, p.44.
Assim, PIOVESAN defende que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda Constitucional 45/2004 têm hierarquia constitucional, uando-se como normas material e formalmente constitucionais, afinal, o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal não revogou o § 2º do mesmo artigo, e deve ser interpretado à luz do sistema constitucional. Além disso, afirma a autora que a lógica e a racionalidade material devem orientar a hermenêutica dos direitos humanos, sendo necessário evitar interpretações que apontem a agudos anacronismos da ordem jurídica.85
Segundo PIOVESAN, acredita-se que o § 3º do artigo 5º reconhece a natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, distinguindo-os dos tratados de cunho comercial. Defende a autora que os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à Emenda 45/2004, por força do § 2º do artigo 5º, são normas material e formalmente constitucionais, e aqueles a serem ratificados, por força do mesmo artigo 5º, § 2º, independentemente do seu quorum de aprovação, serão normas materialmente constitucionais. Contudo, para converterem-se em normas também formalmente constitucionais deverão percorrer o procedimento demandado pelo § 3º.86
Assim, na hipótese do § 3º do art. 5º da Lei Maior, os tratados de direitos humanos formalmente constitucionais são equiparados às emendas à Constituição, advindo duas categorias de tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: materialmente constitucionais e material e formalmente constitucionais. Frise-se que, segundo Piovesan, todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais por força do § 2º do art. 5º e poderão, pelo disposto no § 3º do mesmo dispositivo, adquirir a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição.87
Celso LAFER, em sua obra, ensina que o artigo 4º da Constituição brasileira aponta para a complementaridade entre o Direito Internacional Público e o Direito Constitucional e indica a irradiação de conceitos elaborados no âmbito do Direito das Gentes no plano do Direito Público Interno. Quanto aos tratados internacionais, o professor entende que os referentes a direitos humanos anteriores à Constituição Federal de 1988 aos quais o Brasil aderiu e que foram validamente promulgados têm hierarquia de normas constitucionais, pois foram formalmente recepcionados pelo § 2º do artigo 5º. Lembra, ainda, que, com a vigência da Emenda Constitucional 45/2004, os tratados internacionais a que o Brasil venha a aderir, para serem formalmente recepcionados como normas constitucionais, devem obedecer ao “iter” previsto no novo § 3º do artigo 5º.88
85 Temas, p.48.
86 Temas, p.49.
87 Temas, p.57.
Segundo o professor LAFER, os dispositivos dos Tratados relativos a direitos humanos recepcionados pela ordem jurídica brasileira depois da Constituição de 1988 e antes da Emenda 45/2004 têm hierarquia constitucional por força do § 2º do artigo 5º, concebendo, na linha de Flávia PIOVESAN, que o § 2º do artigo 5º tem a função de tecer a interação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional.89
Vale lembrar que esse é o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos, recepcionada no ordenamento brasileiro num momento posterior à Constituição de 1988 e anterior à Emenda 45/2004, possuindo, tendo em vista o critério desses doutrinadores, hierarquia constitucional.
Segundo o professor Alexandre de MORAES, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 concedeu ao Congresso Nacional, somente na hipótese de tratados e convenções internacionais que versem sobre Direitos Humanos, a possibilidade de incorporação com status ordinário(art. 49, I/ CF) ou com status constitucional (art. 5º, §3º/ CF).90
Desse modo, para o jurista, cujo entendimento diverge dos demais já mencionados, as normas previstas nos atos, tratados, convenções ou pactos internacionais devidamente aprovados pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Presidente da República ingressam no ordenamento jurídico brasileiro como atos normativos infraconstitucionais, de mesma hierarquia às leis ordinárias, subordinando-se, pois, integralmente, às normas constitucionais.91
Assim, de acordo com o professor, não existe hierarquia entre as normas ordinárias de direito interno e as decorrentes de atos ou tratados internacionais. A ocorrência de eventual conflito entre essas normas, segundo MORAES, será resolvida ou pela aplicação do critério cronológico, devendo a norma posterior revogar a norma anterior, ou pelo princípio da especialidade.92
Nesse sentido, afirma Alexandre de MORAES que os compromissos assumidos pelo Brasil em virtude de convenções, atos, tratados, pactos ou acordos internacionais de que seja parte, devidamente ratificados pelo Congresso Nacional, promulgados e publicados pelo Presidente da República, apesar de ingressarem no ordenamento jurídico
88 C. LAFER, A Internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais, 1 ed. Barueri, Manole, 2005, p. 16-19.
89 C. LAFER, A Internacionalização, p. 16-19.
90 A. de MORAES, Direitos, p. 310.
91 A. de MORAES, Direitos, p. 312.
92 A. de MORAES, Direitos, p. 312.
Constitucional (art. 5º, §2º/CF), não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração da sua Constituição, devendo, pois, sempre ser interpretados com as limitações impostas constitucionalmente.93
Mais do que isso, para Moraes, esses atos normativos são passíveis de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, pois, apesar de originários de instrumentos internacionais, não guardam nenhuma validade no ordenamento jurídico interno se afrontarem qualquer preceito da Constituição Federal.
De acordo com Alexandre de MORAES, no julgamento da Convenção 158 da OIT, o Supremo Tribunal Federal afirmou, por unanimidade, a propósito de objeções levantadas ao cabimento da ADIN pelo Presidente da República nas informações elaboradas pela Advocacia Geral da União, a possibilidade jurídica do controle de constitucionalidade, pelos métodos concentrado e difuso, das normas de direito internacional, desde que já incorporadas definitivamente ao plano do direito positivo interno, explicitando, também por votação unânime, que esse entendimento decorre da absoluta supremacia da Constituição Federal sobre todo e qualquer ato de direito internacional público celebrado pelo Estado brasileiro-RP 803-DF(RTJ84/724); RE 109.173-SP(RTJ 121/270).94
Num julgado em que se discutia a eventual incompatibilidade entre a Convenção de Varsóvia (art.22) e a Constituição Federal (art. 5º, inciso II e § 2º), a Suprema Corte Brasileira decidiu que “os tratados subscritos pelo Brasil não se superpõem à Constituição Federal”.95
O professor Alexandre de MORAES defende, assim, a supremacia das normas constitucionais em relação aos tratados internacionais, salvo na hipótese prevista no §3º do art 5º, instituído pela EC 45/04, mesmo que devidamente ratificados, e a plena possibilidade de seu controle de constitucionalidade, ressaltando os dizeres do Ministro Celso de Mello, segundo o qual o respeito à supremacia da Constituição é o ponto delicado sobre o qual se estrutura o complexo edifício institucional do Estado democrático e no qual se apóia todo o sistema organizado de proteção das liberdades públicas.96
Do mesmo modo, Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO, em lição, destaca que é pacífico no direito brasileiro que as normas internacionais convencionais, cumprindo o processo de integração à nossa ordem jurídica, têm força e hierarquia de lei ordinária.
93 A. de MORAES, Direitos, p. 312.
94 A. de MORAES, Direitos, p. 312.
95 STF-Agravo de Instrumento 196.379-9/RJ, Rel. Min Marco Aurélio, Diário da Justiça, seção I, 14 ago. 1997, p. 36.790, citando precedente RE nº 172.720.
96 Diário da Justiça, seção I, 13 ago. 1997, p. 36.563.
Em consequência, se o Brasil incorporar tratado que institua direitos fundamentais, esses não terão força senão de lei ordinária. Havendo, porém, outros direitos fundamentais cuja hierarquia é constitucional, existiria, então, para FERREIRA FILHO, direitos fundamentais de dois níveis diversos: um constitucional e outro meramente legal. 97
97 Direitos Humanos Fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 99.
IV. DO DIREITO COMPARADO.
Segundo Alexandre de MORAES, a consagração da supremacia das normas constitucionais em relação aos atos e tratados internacionais devidamente incorporados no ordenamento jurídico nacional permanece como regra no direito comparado, mesmo em algumas constituições que adotaram novas regras objetivando a maior efetividade dos direitos fundamentais.98
As Constituições latino-americanas recentes conferem aos tratados de direitos humanos um status jurídico especial e diferenciado, segundo PIOVESAN, destacando-se a Constituição Argentina que, em seu artigo 75, § 22, eleva os principais tratados de direitos humanos à hierarquia de norma constitucional.
Explica MORAES que, após a reforma de 1994, a Constituição Argentina incorporou em seu texto vários tratados referentes a direitos humanos e passou a permitir a possibilidade de incorporação, com status constitucional, de outros tratados que versem sobre direitos humanos, desde que sua ratificação pelo Poder Legislativo seja realizada por quorum idêntico ao destinado a Emendas Constitucionais.99
Assim, os doutrinadores ensinam que, na Argentina, os tratados em geral possuem hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, enquanto que os tratados que versam sobre direitos humanos possuem hierarquia constitucional, em complementação aos direitos constitucionalmente garantidos.
As Constituições da Venezuela (art. 23) e do Peru (art. 105) seguem o disposto na Lei Maior Argentina, de acordo com a doutrina. Ressalta-se que as Constituições francesa de 1958 (art. 55), grega de 1975 (art. 28, § 1.º) e peruana de 1979 (art. 101) dão prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitucional, garantindo ao compromisso internacional plena vigência, sem embargo de leis posteriores que o contradigam.
98 Direitos, p. 312.
99 A. de MORAES, Direitos, p. 314.
No mesmo sentido de conceder maior efetividade aos direitos humanos fundamentais, a Constituição Espanhola de 1978, segundo MORAES, determina, em seu art. 10, item 2, que as normas relativas a direitos fundamentais e às liberdades públicas, desde que reconhecidas pelo próprio texto constitucional, deverão ser interpretadas em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados e acordos internacionais sobre as mesmas matérias ratificadas pela Espanha. Para o jurista, trata-se de direcionamento interpretativo pois, em seu artigo 95, continua a consagrar a supremacia das normas constitucionais, ao afirmar que a celebração de um tratado internacional que contenha estipulações contrárias à Constituição exigirá prévia revisão constitucional.100
A Lei Fundamental Alemã, em seu artigo 24, item 1, autoriza o Parlamento a transferir direitos de soberania para organizações supranacionais, garantindo, assim, nessas hipóteses, maior hierarquia na recepção dos tratados internacionais. Essa possibilidade, porém, não afastou, segundo MORAES, a supremacia das normas constitucionais pois, em seu art. 79, a Lei Maior Alemã exige quorum de reforma constitucional para que o tratado adquira status constitucional.101
Em síntese, segundo REZEK, à exceção de algumas poucas constituições, tal como a Holandesa, que, após a revisão de 1956, permite, em certas circunstâncias, que tratados internacionais derroguem seu próprio texto, é muito difícil que uma dessas leis fundamentais despreze, neste momento histórico, “o ideal de segurança e estabilidade da ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si mesma, ao produto normativo dos compromissos exteriores do Estado” 102 .
100A. de MORAES, Direitos, p. 314.
101 A. de MORAES, Direitos, p. 315.
102 J. F. REZEK, Direito: curso elementar, p. 103.
V. DA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA – E DA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL.
V.1. Da Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também chamada de Pacto de São José da Costa Rica, é um tratado internacional celebrado entre os paísesmembros da Organização dos Estados Americanos, subscrito durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 1969, na cidade de San José da Costa Rica, tendo adquirido vigência em 18 de julho de 1978. Trata-se de uma das bases do sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos que consagra diversos direitos civis e políticos, tais como: o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, o direito à vida, direito à integridade pessoal, direito à liberdade pessoal e garantias judiciais, direito à proteção da honra e reconhecimento à dignidade, à liberdade religiosa e de consciência, à liberdade de pensamento e de expressão e o direito de livre associação.
Com a incorporação e a integração normativa, formal, pública e vinculante, no direito positivo brasileiro, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificada no país pelo Decreto Legislativo 27, de 25.09.1992, e promulgada pelo Decreto 678, de 06.11.1992, chegou-se ao ápice da polêmica a respeito da possibilidade da prisão civil do infiel depositário, já que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos só permite a prisão civil por dívida em uma única hipótese: no caso de inadimplemento de obrigação alimentícia. É a seguinte a redação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, item 7):
“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.”
Esse artigo da Convenção fomentou a controvérsia sobre a possibilidade de prisão do depositário infiel, por ela não contemplada, mas permitida pela Constituição brasileira, no inciso LXVII do artigo 5º, segundo o qual “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
A doutrina ensina que, apesar de a polêmica a respeito da possibilidade de prisão civil ao depositário infiel ter adquirido grande relevância depois da ratificação pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, a questão já era discutida desde a integração, no direito positivo doméstico, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966, em vigor desde 23 de março de 1976 e, no Brasil, pelo Decreto Legislativo 226, de 12 de dezembro de 1991, promulgado pelo Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Tal Pacto, de abrangência internacional, mais ampla, portanto, do que a Convenção Americana de Direitos Humanos, de caráter regional, obriga o Brasil, que a ratificou na vigência da Constituição de 1988, estando, portanto, em consonância com a disposição do art. 5º, § 2º da Lei Maior.
Dispõe o referido Pacto que:
“Art. 11 – Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”.
De acordo com os doutrinadores, segundo tal preceito, o descumprimento de uma obrigação contratual, como a de devolução de bem sob custódia de fiel depositário, por força de contrato, não pode servir de base ao decreto de prisão. Além disso, ensina a doutrina que a alienação fiduciária em garantia e o depósito dela decorrente, ou o penhor mercantil, com depósito do bem penhorado em mãos do devedor, transformado em fiel depositário, constituem obrigações de natureza contratual, abrangida pela norma internacional recepcionada pela legislação brasileira que, dessa forma, revogou os dispositivos legais anteriores que autorizavam a prisão do depositário infiel, por obrigação voluntariamente assumida por meio de contrato.
Para José Carlos de MAGALHÃES, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos contém norma imperativa de direito internacional, de observância compulsória, com caráter de jus cogens a que se refere o art. 53 da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados. Segundo a definição contida nesse dispositivo, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.103
103 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 93.
Assim, explica o jurista que norma imperativa internacional sequer pode ser modificada por outra norma internacional, salvo se tiver a mesma característica de jus cogens, a indicar a disposição da comunidade internacional como um todo em preserver princípios e valores por ela consagrados, destacando que o Brasil participa e integra essa comunidade internacional e comunga com tais princípios, inscrevendo, como um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III/CF) e, como princípio norteador das relações internacionais, a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II/ CF).104
V.2. Do Depositário.
Para melhor analisarmos a questão, vale explicar que a palavra depositário é originária do latim “deponere” e designa uma pessoa a quem se entrega ou a quem se confia alguma coisa, em depósito.
Dentre os qualificados como depositários pela legislação brasileira, estão o depositário constituído por contrato de depósito (art.627 do Código Civil); o constituído em caso de depósito necessário (art. 647 do Código Civil); o depositário fiduciário, em relação à alienação fiduciária (Decreto-Lei 911/69), e o depositário judicial, quando assume um encargo que lhe é deferido pelo Poder Judiciário, responsabilizando-se, como longa manus da Justiça, a guardar o bem até que, por ordem judicial, lhe seja solicitado.
V.3. Da Prisão Civil.
O Ministro CELSO DE MELLO, no julgamento do HC 78375, em 1999, ensinou que a vedação da prisão civil por dívida, no sistema jurídico brasileiro possui extração constitucional e que a Lei Fundamental, ao estabelecer as bases do regime que define a liberdade individual, consagra, em tema de prisão civil por dívida, uma tradição republicana que, iniciada pela Constituição de 1934 (art. 113, n. 30), tem sido observada, com a só exceção da Carta de 1937, pelos sucessivos documentos constitucionais brasileiros (CF/46, art. 141, §32; CF/67, art. 150, § 17; CF/69, art. 153, §17). Ressalta o Ministro que a Constituição de 1988, perfilhando essa mesma orientação, dispõe, em seu art. 5°, LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
104 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p.94.
A cominação de coerção corporal até um ano de prisão ao depositário infiel, seja o depósito voluntário ou necessário, como meio suasório para cumprimento da obrigação de restituição do objeto do depósito, ínsita na responsabilidade civil do depositário, foi criada pelo artigo 1.287 do Código Civil de 1916, sendo atualmente prescrita no artigo 652 do Código Civil de 2002, e instrumentalizada nos artigos 902 e 904 do Código de Processo Civil. Prescreve o novo Código Civil: “Seja o depósito voluntário ou necessário, o depositário que não o restituir quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos.” Além disso, de acordo com o Código de Processo Civil:
“Art 902. Na petição inicial instruída com a prova literal do depósito e a estimativa do valor da coisa, se não constar do contrato, o autor pedirá a citação do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias:
I -entregar a coisa, depositá-la em juízo ou consignar-lhe o equivalente em dinheiro;
II -contestar a ação.
§ 1º No pedido poderá constar, ainda, a cominação da pena de prisão até 1 (um) ano, que o juiz decretará na forma do art. 904, parágrafo único.
§ 2º O réu poderá alegar, além da nulidade ou falsidade do título e da extinção das obrigações, as defesas previstas na lei civil.”
“Art. 904. Julgada procedente a ação, ordenará o juiz a expedição de mandado para a entrega, em 24 (vinte e quatro) horas, da coisa ou do equivalente em dinheiro. Parágrafo único. Não sendo cumprido o mandado, o juiz decretará a prisão” .
Essas foram as fontes (lei civil geral) a que se reportou o Decreto-Lei nº. 911/69, sobre alienação fiduciária em garantia de coisas móveis e que, por remissão, utiliza-se da ação de depósito como meio de aplicação da prisão civil ao infiel depositário fiduciário.
Importante salientar, como explicou o Ministro Octavio GALLOTTI, no julgamento do RHC 66.627-SP, que a prisão civil, embora medida privativa de liberdade de locomoção física do depositário infiel e do inadimplente de obrigação alimentar, não tem conotação penal, pois sua única finalidade consiste em compelir o devedor a satisfazer obrigação que somente a ele compete executar. Trata-se, na realidade, como assevera PONTES DE MIRANDA, de “efeito de pretensão civil, e não criminal. Por isso mesmo, o STF, ao analisar a prisão civil, nela destacou o “caráter constritivo” que lhe identifica -como elemento primordial que é -a sua própria configuração jurídica”.105
No mesmo sentido, Clovis BEVILÁQUA qualifica o instituto da prisão civil como “meio coercitivo para obter-se a restituição do depósito” e o Ministro MOREIRA ALVES, em artigo doutrinário sobre a matéria, como “instrumento de coerção processual destinado a compelir o devedor a cumprir a obrigação não satisfeita”.106
No julgamento do HC 71.038-MG, o relator, Ministro CELSO DE MELLO, declarou que “a prisão civil, por revestir-se de finalidade jurídica específica, não ostenta caráter de pena, eis que a sua imposição não pressupõe, necessariamente, a prática de ilícito penal. Foi por essa tal específica razão que o STF, ao ressaltar que pessoas sujeitas à prisão civil não podem ser recolhidas a celas comuns, em companhia de criminosos comuns, fundamentou esse reconhecimento na relevante circunstância de que esse instituto não se confunde com a custódia decorrente de condenação criminal”.107
Seguindo o mesmo raciocínio, decidiu o Min. CORDEIRO GUERRA: “A prisão civil, prevista e ressalvada na própria Constituição, por sua natureza e finalidade, não se confunde com prisão decorrente de condenação criminal. (…) Inaplicabilidade do regime de prisão albergue às prisões civis, sob pena de tirar-lhe o caráter constritivo que as justifica e lhe é próprio”.108
105 O. N. C. QUEIROZ, Prisão Civil e os Direitos Humanos, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, p. 189.
106 C. BEVILÁQUA, Comentários ao Código Civil, vol V, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1943, art.1287.
107 Lex/ Jurisprudência do STF, vol. 181/182, rel. Min. Néri da Silveira.
108 RTJ 98/684.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua 5ª Turma, unanimemente decidiu dar provimento ao Recurso Ordinário nos autos do HC 496.905-9/1, para cassar decisão que decretou a prisão civil do depositário infiel, reiterando os dizeres do juiz RABELLO, segundo o qual: “Fazer da prisão civil, como se faz, no caso, via instituto da alienação fiduciária em garantia, meio de proteção ao crédito, implica antes prestígio de manifestação de espírito utilitarista do que sustentação de caráter da dignidade do Direito, que deve ser ‘economicamente eficiente, mas moderadamente equitativo’, como escreve TÉRCIO Sampaio FERRAZ JÚNIOR. (…) Desde os romanos, antes da era cristã, a orientação que se desenvolve não tem sido outra que não a de responder por dívida não com o corpo, mas com o patrimônio”.109
Em setembro de 1982, o então Procurador de Justiça José RAUL GAVIÃO DE ALMEIDA, discorreu, num artigo sobre o tema: “Discutir sobre a natureza jurídica do instituto da prisão civil só tem oportunidade no plano acadêmico, pois que a realidade nivela, pela promiscuidade do sofrimento que impõe, os efeitos reparatório e punitivo das sanções. Triste é que, quando nova orientação sobre aprisionamento é adotada, buscandose reservá-lo aos casos de indeclinável necessidade, em contradição se leve para o campo dos negócios a coerção física, remédio característico da órbita penal. Não lucra a Justiça e perde a sociedade com a opção. É o indivíduo e sua família que sofrem com o encarceramento. É o Estado que custeia, gastando muitas e muitas vezes mais que o valor econômico que a liberdade do preso serve em penhor de pagamento. Deve-se evitar o emprego abusivo de soluções punitivas, deformadas por explicações punitivas, deformadas por explicações reparatórias, quando se sabe que as sanções peculiares ao Direito Civil têm-se revelado mais construtivas que as de direito penal”.110
Destaca-se que esses dizeres foram proferidos antes do advento da Constituição de 1988, que, segundo os juristas, tendo ocorrido, deu mais força a seus argumentos.
Em 2007, no do julgamento do RE 466.343, o ministro Cezar PELUSO ponderou: “O que se tem hoje como direito posto é a inadmissibilidade da prisão do depositário, qualquer que seja a qualidade desse depósito. (…) Já não é possível conceber o corpo humano como passível de experimentos normativos no sentido de que se torne objeto de técnicas de coerção para cumprimento de obrigações estritamente de caráter patrimonial, ressalvando-se o caso do inadimplente de pensão alimentar”.111
No julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999, o Ministro Ruy ROSADO DE AGUIAR, relator do processo, ponderou: “A meu Juízo, não cabe prisão civil do devedor em alienação fiduciária. Essa opinião é antiga e se reforça na mesma proporção em que se degrada o sistema prisional do país, transformados os cárceres em depósitos destituídos das mínimas condições de dignidade, conforme estamos diariamente sendo informados pela imprensa. Basta a fotografia de uma cela em que os detentos, para dormir, revezam-se na ocupação dos espaços; basta, também, ouvir o relato do que acontece no fundo dos corredores das penitenciárias e nas celas improvisadas das delegacias de polícia para se entenderem os esforços dos penalistas e dos penitencialistas em limitar o uso da prisão apenas àqueles que, absolutamente, não podem continuar vivendo em sociedade.
109 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p. 203.
110 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p. 191.
111 Recurso Extraordinário 466.343.
Nessas condições, que o juiz não pode desconhecer, parece inadmissível submeter o descumpridor de um contrato, o devedor de uma dívida civil, às agruras de um regime penitenciário fechado, durante meses, que a lei penal reserva aos delinqüentes mais perigosos, pois à maioria dos crimes são, hoje, aplicadas penas alternativas”.112
Interessante destacar a afirmação do Min. Eduardo RIBEIRO, no julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999: “Não conheço nenhum país civilizado cuja legislação contenha disposição estabelecendo que o não pagamento de dívidas, em geral, acarrete a prisão do devedor”.113
V.4. Da Polêmica a Respeito da Possibilidade de Prisão do Depositário Infiel.
Diante da dualidade de tratamento relativa à prisão civil por dívida do depositário infiel, permitida e regulada pelo Direito brasileiro, mas proibida pelo Pacto de São José da Costa Rica, iniciou-se uma discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema, tendo sido suscitados diversos argumentos, tais como: o inciso LXVII do artigo 5º da Lei Maior estaria em contraste com a Convenção, sobre ela sobrepondo-se; a Convenção contém norma de caráter geral e, assim, pelo princípio segundo o qual norma geral não revoga norma especial e nem por esta é revogada, continuaria vigente a norma especial que regula a prisão do depositário infiel, no caso da alienação fiduciária em garantia; o que se permite é a prisão por não pagamento de dívida, e não a prisão como meio para impedir que o depositário se furte a entregar o bem a ele confiado.
Discute-se se a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica pelo Brasil implicou redução das duas tradicionais exceções, depositário infiel e alimentante inadimplente, limitando-se à última, ou seja, se no Brasil foi banida, convencionalmente, a prisão civil cominada em lei, também por infidelidade depositária de quaisquer espécies.
V.4.1. Da Polêmica a Respeito da Hierarquia do Pacto de São José da Costa Rica.
O Pacto de São José da Costa Rica determina a obrigação de os Estados-Partes respeitarem os direitos e liberdades nele reconhecidos e garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa, sem discriminação. No preâmbulo, os signatários comprometem-se a uma “proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos”. Além disso, o §2º do artigo 5º da Constituição Federal prescreve que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
112 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p.194.
113 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p.198.
Assim, há polêmica acerca da prisão civil do depositário infiel em face da vigência do Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão civil para o infiel depositário de qualquer natureza ou espécie. O problema, que reclama reflexão, mais intricado sobre a prisão civil do infiel depositário, autorizada como uma das exceções do art. 5º, LXVII, da Constituição Federal de 1988, situa-se na repercussão ou alcance, no direito interno, da adoção do Pacto de São José da Costa Rica, como fato jurídico superveniente à onstituição atual. Daí a importância do estudo realizado a respeito da posição jurídica dos tratados internacionais, em especial do Pacto de São José da Costa Rica, no Direito brasileiro.
V.4.1.1. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status de Lei Ordinária.
V.4.1.1.1. Prisão Regular.
O Supremo Tribunal Federal, por um período considerável, vinculou-se à teoria que considera constitucional a prisão civil do depositário infiel, considerando o Pacto de São José da Costa Rica com hierarquia de lei ordinária. Nesse sentido, é interessante transcrever alguns trechos do despacho monocrático proferido pelo Ministro CELSO DE MELLO, quando presidente do STF, em que se resolveu a questão da adesão do Brasil aos tratados internacionais, com referência ao Pacto de São José da Costa Rica, com abordagem do artigo 5º, §2º da Constituição: “A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica, cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas, não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por dívida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual. (…) Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. (…) Torna-se evidente que a legitimidade juridica da prisão civil por dívida, nas hipóteses previstas em nossa Lei Básica tem, na própria Constituição, o fundamento de sua autoridade e o suporte direto de sua validade e eficácia”.114
Tradicionalmente, nossos Tribunais Superiores pronunciavam-se nesse sentido, afirmando que os tratados incorporados formalmente ao direito interno são normas comuns do mesmo nível hierárquico infraconstitucional das leis ordinárias e têm sua eficácia regida por princípios aplicáveis às leis de caráter geral, inclusive quanto aos critérios cronológico (lex posterior derogat priori) e da especialidade, tal como expressa a seguinte passagem:
“O tratado internacional situa-se formalmente no mesmo nível hierárquico da lei, a ela se equiparando. A prevalência de um ou outro regula-se pela sucessão no tempo”.115
Embora a tese da paridade entre tratado e lei federal tenha sido firmada pelo Supremo Tribunal Federal em 1977, sendo anterior, portanto, à Constituição de 1988, e refira-se ainda a tema comercial, constata-se ter sido ela ainda reiterada em novembro de 1995, quando do julgamento, em grau de habeas corpus, de caso relativo à prisão civil por dívida do depositário infiel. Com efeito, no julgamento do HC 72.131-RJ (22.11.1995), ao enfrentar a questão concernente ao impacto do Pacto de São José da Costa Rica (particularmente do art. 7.7, que proíbe a prisão civil por dívidas, salvo no caso de alimentos) no Direito brasileiro, o Supremo Tribunal Federal, em votação não-unânime (vencidos os Ministros MARCO AURÉLIO, Carlos VELLOSO e SEPÚLVEDA PERTENCE), afirmou que: “(…) Inexiste, na perspectiva do modelo constitucional vigente no Brasil, qualquer precedência ou primazia hierárquico-normativa dos tratados ou convenções internacionais sobre o direito positivo interno, sobretudo em face das cláusulas inscritas no texto da Constituição da República, eis que a ordem normativa externa não se superpõe, em hipótese alguma, ao que prescreve a Lei Fundamental da República. (…) A ordem constitucional vigente no Brasil não pode sofrer interpretação que conduza ao reconhecimento de que o Estado brasileiro, mediante convenção internacional, ter-se-ia interditado a possibilidade de exercer, no plano interno, a competência institucional que lhe foi outorgada expressamente pela própria Constituição da República. A circunstância de o Brasil haver aderido ao Pacto de São José da Costa Rica – cuja posição, no plano da hierarquia das fontes jurídicas, situa-se no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas – não impede que o Congresso Nacional, em tema de prisão civil por divida, aprove legislação comum instituidora desse meio excepcional de coerção processual. (…) Os tratados internacionais não podem transgredir a normatividade emergente da Constituição pois, além de não disporem de autoridade para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais, não possuem força para conter ou para delimitar a esfera de abrangência normativa dos preceitos inscritos no texto da Lei Fundamental. Diversa seria a situação se a Constituição do Brasil – à semelhança do que hoje estabelece a Constituição Argentina, no texto emendado pela Reforma Constitucional de 1994 (art. 75, n.22) – houvesse outorgado hierarquia constitucional aos tratados celebrados em matéria de direitos humanos. Parece-me irrecusável, no exame da questão concernente à primazia das normas de direito internacional público sobre a legislação interna ou doméstica do Estado brasileiro, que não cabe atribuir, por efeito do que prescreve o art. 5º, § 2º, da Carta Política, um inexistente grau hierárquico das convenções internacionais sobre o direito positivo interno vigente no Brasil, especialmente sobre as prescrições fundadas em texto constitucional, sob pena de essa interpretação inviabilizar, com manifesta ofensa à supremacia da Constituição – que expressamente autoriza a instituição da prisão civil por dívida em duas hipóteses extraordinárias (CF, art. 5º, LXVII) – o próprio exercício, pelo Congresso Nacional, de sua típica atividade político-jurídica consistente no desempenho da função de legislar. A indiscutível supremacia da ordem constitucional brasileira sobre os tratados internacionais, além de traduzir um imperative que decorre de nossa própria Constituição (art. 102, III, b), reflete o sistema que, com algumas poucas exceções, tem prevalecido no plano do direito comparado.”
114 HC 77.631-5/SC, DJU 158-E, de 19/08/1998, Seção I, p. 35.
115 STJ, 3ª T., REsp 74.736/RJ, rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 226, de 27/11/95, p. 40.887.
Trata-se de trechos extraídos do voto vencedor do Ministro CELSO DE MELLO no julgamento do HC 72.131 – RJ, em 22.11.1995. Ressalte-se que este julgado foi posteriormente reiterado nos julgamentos do RE 206.482-SP; HC 76.561-SP, Plenário, 27.05.1998; RE 243.613, 27.04.1999 e HC 78375, 28/01/1999, ocasião em que a Corte Maior reiterou que: “O art. 5°, LXVII, segundo o qual “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel” qualifica-se como típica norma revestida de eficácia contida ou restringível, eis que, em função de seu próprio conteúdo material, contempla a possibilidade de o legislador comum limitar o alcance da vedação constitucional pertinente à prisão civil (noção irredutível ao conceito de prisão penal), autorizando-o excepcionar a cláusula proibitória em duas únicas hipóteses: (a) inadimplemento de obrigação alimentar e (b) infidelidade depositária. Note-se, portanto, considerada a especial qualificação desse preceito constitucional, definido como norma de eficácia contida – consoante proclama o magistério da doutrina (José Afonso da Silva, Aplicatibilidade das normas constitucionais, RT, 1968, p. 97; Maria Helena Diniz, Norma constitucional e seus efeitos, Saraiva, 1989, p. 101, v.g.) – que a possibilidade jurídica de o Congresso Nacional instituir a prisão civil por dívida, sempre nos casos excepcionais previstos na Carta Política, encontra fundamento na própria Constituição, cuja autoridade normativa não pode e nem deve expor-se a mecanismos de limitação fixado em sede de tratados internacionais. Como as exceções derrogatórias ao postulado fundamental que veda a prisão civil por dívida possuem inquestionável matriz constitucional (Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 1/74, 1990, Saraiva; Celso RIBEIRO BASTOS, Comentários à Constituição do Brasil, vol. 2/305-306, 1989, Saraiva), torna-se evidente que a legitimidade jurídica da prisão civil por dívida, nas duas hipóteses previstas em nossa Lei Básica, tem, na própria Constituição – e não em outros instrumentos normativos de inferior qualificação hierárquica -o fundamento de sua autoridade e o suporte direto de sua validade e eficácia. Desse modo, não há como fazer abstração da Constituição para, com evidente desprestígio da normatividade que dela emana, conferir, sem razão jurídica, precedência a uma convenção internacional sobre o ordenamento constitucional brasileiro. No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os tratados internacionais que, incorporados ao sistema de direito positivo interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta política. O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normative deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público”.
Seguindo essa orientação, o STF decidiu:
“(…) Uma vez celebrado o penhor mercantil e nomeado depositário para os bens respectivos, a aceitação do encargo faz presumir a tradição dos objetos dados em garantia e a falta de sua entrega caracterizará a infidelidade do depositário, que assim fica sujeito às sanções previstas”.116
“Mesmo em se tratando de depósito de coisa fungível, o depositário infiel pode ter sua prisão decretada. Constrangimento ilegal não caracterizado”.117
117 RTJ 162/612-613, rel. Min. Sydney Sanches.
“Habeas corpus. Prisão civil. Depositário infiel. Penhor mercantil. Ação de depósito. As mercadorias dadas em penhor mercantil ao banco, em razão de contrato de 116 RT 476/235 abertura de financiamento, foram transferidas para a posse do paciente, como fiel depositário, com as obrigações e responsabilidades inerentes a essa condição e com expressa vedação de não dispor dos referidos bens a qualquer titulo, até que fossem cumpridas todas as obrigações assumidas. A falta de entrega dos objetos dados em garantia faz caracterizar a infidelidade do depositário, que fica sujeito à prisão civil”.118
Quanto a esse tema, manifesta-se Luiz Flavio GOMES: “Quando a norma internacional constitui mera repetição ou explicitação de um texto constitucional, possui status da mesma natureza; de outro lado, se a norma internacional reflete direito outro não previsto na Constituição, possui força de lei ordinária”.119
Interessante, também, ressaltar a manifestação do STF que, por sua 1ª Turma, no julgamento do HC 75.306-RJ, em 12.09.199, decidiu, tendo por relator o Ministro Moreira Alves, que: “Em face da Carta Magna de 1988, persiste a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel em se tratando de alienação fiduciária, bem como que o Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do art. 5º, LXVII, da mesma Constituição, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais sobre a prisão do depositário infiel”.
V.4.1.1.2. Prisão Irregular: Pacto de São José da Costa Rica Revogou o Código Civil.
Já no HC nº 74.383-MG, a Segunda Turma do STF acabou por acompanhar o voto do Ministro Francisco REZEK, o qual destacou que o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal permite que o legislador ordinário discipline a prisão do alimentante e do depositário infiel, e não obriga. O constituinte, de acordo com o Ministro, não ordena que se prenda o depositário infiel, apenas diz que é possível legislar nesse sentido. Em seu voto, o Ministro REZEK também critica a pena de prisão como meio de forçar a solução de uma dívida civil.120
Assim, a Suprema Corte decidiu, em acordo com o Ministro Francisco REZEK, que a Constituição não determina a prisão do depositário infiel, limitando-se a permitir que a lei assim disponha.
118 HC 75.900-MG, rel. Min. Ilmar Galvão.
119 A Questão da Obrigatoriedade dos Tratados e Convenções no Brasil – Particular enfoque da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, RT 710, ano 83, dez., 1994, p. 30.
120 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p. 207.
Nesse sentido, MAGALHÃES ressalta que a alegação de que o Decreto-Lei 911/69, que regula a alienação fiduciária em garantia, por ser lei especial, não é revogada por lei geral, característica de que se revestiria a Convenção Americana, constitui verdadeiro pretexto para se deixar cumprir norma a que o Brasil obrigou-se no plano internacional, sem opor qualquer reserva, nem ressalva interpretativa, ficando claro que o Brasil acolheu in totum a Convenção, comprometendo-se a cumpri-la.121
Ademais, como lembram Paulo Sérgio RESTIFFE e Paulo RESTIFFE NETO, em trabalho de pesquisa e análise sobre a questão, “é equivocado o entendimento de que foi a lei especial (Dec. Lei 911) que criou e iniciou a prisão civil do depositário infiel na alienação fiduciária, porque o fenômeno jurídico correto é outro: o que o Dec. Lei 911 fez foi atribuir, por remissão, ou reportagem, ao fiduciário, as responsabilidades e os encargos que ao depositário incumbem de acordo com a lei civil de caráter geral, art. 1287 do CC/16 e atual art. 652 do novo Código Civil, cominada através da ação de depósito, também de caráter geral, do Código de Processo Civil. Derrogada pelo Pacto da Costa Rica a fonte normativa de lei geral da prisão civil do depositário infiel (Código Civil), estão esvaziadas as remissões ou reportagens a ela feitas em leis especiais. E a correspondente ação, segundo os autores, que assegura ao depositante o exercício do direito de pedir tutela jurisdicional para restituição sob compulsão corporal, resta ineficaz, isto é, tornou-se inoperante o devido processo legal (ação de depósito) na parte (arts. 902 e 904) em que viabilizava a aplicação da prisão civil que o art. 1.287 cominava ao infiel depositário para compeli-lo a cumprir a obrigação personalíssima de restituir o depósito”.122
121 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p.98.
122 P. S. RESTIFFE, P. RESTIFFE NETO, Garantia Fiduciária, 3 ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 141.
Em lição, os mesmos doutrinadores explicam que, atualmente, as leis especiais, a exemplo do Dec-lei 911, que fazem remissão ou envio às responsabilidades e encargos que ao depositário incumbem de acordo com a lei civil, embora vigentes e recepcionadas pela Constituição de 1988, encontram-se esvaziadas do conteúdo compulsivo prisional atinente à responsabilidade civil por infidelidade depositária, cuja fonte era o art. 1.287 do Código Civil. Reiteram, ainda, que a Constituição continua a autorizar excepcionalmente (não obriga), mas inexiste lei em vigor, no momento atual do direito positivo infraconstitucional, que comine a prisão civil por infidelidade depositária para ser imposta legitimamente ao responsável por qualquer modalidade de depósito. De acordo com Paulo Sérgio RESTIFFE e Paulo RESTIFFE NETO, “aquela autorização constitucional é dirigida ao legislador ordinário, e esse vazio na normatividade infraconstitucional mantém desfalcada a alternativa da prisão compulsiva no mecanismo da ação de depósito e da ação de apreensão de títulos do Código de Processo Civil”.123
Assim, MAGALHÃES reitera que, mesmo que se pretendesse adotar a tese de que a Convenção tem caráter de lei geral, não revogadora da lei especial, distinção que não pode ser aplicada à Convenção, diante da garantia que estabeleceu, sem fazer distinções, ainda assim a prisão do depositário infiel não seria mais viável, pois a norma à qual se reporta o Dec.-Lei 911/69 (Código Civil) foi revogada, tornando-se, assim, legalmente impossível executá-la. Ressalta, também, que mesmo dispusesse a Constituição, em caráter imperativo, a prisão do depositário infiel, o que não ocorre, ainda haveria que se conferir validade e vigência no Brasil do dispositivo da Convenção Americana que a proíbe, em virtude de a própria Constituição dar primazia aos direitos e garantias individuais nela previstos (art. 60, §3º, IV), não excluindo outros estabelecidos em tratados internacionais ratificados pelo Brasil e, assim, de observância compulsória na ordem interna, inclusive – e sobretudo – pelo Judiciário.124
Feitas essas considerações, MAGALHÃES conclui que a Constituição, nesse dispositivo, não se refere a garantias e direitos adotados em lei, mas a tratados internacionais que venham a consagrar direitos e garantias que nela não estejam expressos.
Sendo assim, o Pacto de São José, tendo sido ratificado pelo Brasil, e não permitindo a prisão por dívida, salvo a decorrente de obrigação a alimentar, revoga toda e qualquer lei que assim disponha, seja de caráter geral, seja especial, ou de qualquer outra natureza que se queira atribuir, por força também do § 2º do art. 5º da Constituição, de hierarquia superior à legislação ordinária.125
A Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao decidir o Habeas Corpus nº 139.712.5/7, relatado pelo Des. Sérgio PITOMBO, acolheu o entendimento de vigência do Pacto de São José. O Acórdão examina a material em profundidade e, da ementa que resume a decisão, extrai-se o seguinte trecho: “Inexistência de norma infraconstitucional que especifique e regulamente a imaginada prisão do depositário judicial. Integração do pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/92) no sistema protetivo dos direitos individuais, estabelecido na Constituição da República. Dissenso dos julgados. Entendimento, de outra sorte, de que o aludido pacto revogou a norma geral do artigo 1.287, do Código Civil. Quebra, ainda, do denominado princípio da razoabilidade. Ordem concedida, por falta de justa causa para a prisão, com determinação.”126
123 P. S. RESTIFFE, P. RESTIFFE NETO, Garantia, p. 143.
124 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 95.
125 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 97.
No julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999, o Ministro Ruy ROSADO DE AGUIAR, relator do processo, decidiu que: “ (…) O Tratado Internacional aprovado e promulgado no Brasil, tendo a eficácia de lei ordinária, pode revogar a lei geral. No caso, o tratado revogou a regra geral do Código Civil, retirando o suporte a que fez remissão a lei especial (DL 911/69). Daí se conclui que, no plano da legislação ordinária, a norma vigorante sobre a prisão civil é o disposto no Pacto de São José, pois que, embora permitida constitucionalmente a prisão do depositário infiel, diante da norma permissiva do texto de 1988, a regra que a institui no país (art. 1.287/CC) ficou derrogada pelo novo diploma (tratado aprovado), da mesma hierarquia no elenco das leis”.
Seguindo a orientação de Paulo Sérgio RESTIFFE e Paulo RESTIFFE NETO, o Ministro ressalta que “a norma de caráter geral (Código Civil e Código de Processo Civil) é que estabeleceu a constitucionalmente autorizada exceção da prisão civil do depositário infiel que não restitua o depósito; as normas especiais em vigor no país não foram criadoras, nem cominadoras, mas remetentes, que apenas abeberaram-se na fonte geral do direito codificado. A conclusão é de que, estando derrogado o art. 1.287 do CC, que é a fonte criadora e irradiadora, inviabilizada está a prisão civil compulsiva em qualquer espécie de depósito, inclusive quanto à responsabilidade do fiduciante depositário de acordo com a lei civil, a que faz remissão o Dec-lei 911. Ou seja, a imposição da prisão civil ao infiel depositário encontra-se suprimida, à falta de previsão legal em vigor, conquanto seja por exceção constitucionalmente permitida (não basta a permissão), e tenham sido recepcionados o Dec-lei 911 e outros diplomas legais pela Constituição. Isso porque, o Pacto de São José da Costa Rica, proclamado vigente pelo STF, revestindo-se de eficácia para diretamente revogar lei geral anterior, derrogou, quanto à prisão civil, a norma geral que a criou e cominou (art. 1.287 do CC de 1916 e arts. 902 e 904 do CPC de 1973)”.
126 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p. 209.
No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça, reunido em corte especial, deu provimento ao Embargo de Divergência 14518/CO, relatado pelo Ministro Ruy ROSADO DE AGUIAR, considerando que “não cabe a prisão civil do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária”.127
127 O. N. C. QUEIROZ, Prisão, p. 211.
Na decisão do HC 79.010-PR, em 10.03.1999, o Ministro MARCO AURÉLIO proferiu decisão semelhante, ao estabelecer que: “(…) O Brasil, ao subscrever o Pacto de São José da Costa Rica, situado no mesmo patamar da legislação ordinária, veio a derrogar o Código Civil, o Código de Processo Civil e, com maior razão, o Dec-lei 911/69, alterado pelo art. 4º da lei 6071/74, no que disciplinavam matérias estranhas à prestação alimentícia”.
O Min. Eduardo RIBEIRO, no julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999, afirmou que “ao serem incorporados ao nosso direito interno, as disposições constantes de tratados têm a mesma hierarquia das leis ordinárias, aplicando-se-lhes as regras destinadas a regular questões de direito intertemporal. (…) O argumento segundo o qual a norma, prevendo a prisão, em caso de alienação fiduciária, seria especial e assim não atingida pela disposição do pacto, de caráter geral, parece levar à inutilidade dessa última. Os convenentes visaram a excluir a possibilidade de qualquer prisão por dívida e não seria razoável admitir-se que persistissem aquelas previstas para determinadas hipóteses específicas”.
Vale apontar os dizeres do Ministro Oswaldo TRIGUEIRO: “O STF deve admitir, por coerência à sua própria orientação, como revogadas, pelo Pacto de São José da Costa Rica, as normas infraconstitucionais de caráter geral sobre prisão civil do depositário infiel, de forma que estão derrogadas, em virtude deste fato, as normas gerais inscritas nos arts. 1.287 do Código Civil de 1916, 902 e 904 do Código de Processo Civil”.128
V.4.1.2. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status de Norma Constitucional.
Os juristas que propugnam pelo status constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos defendem que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos derrogou o texto da Constituição Federal de 1988, no tocante à permissão da prisão civil do depositário infiel.
Nesse sentido, leciona CANOTILHO: “A paridade hierárquico-normativa, ou seja, o valor legislativo ordinário das convenções internacionais deve rejeitar-se pelo menos nos casos de convenções de conteúdo materialmente constitucional (ex.: Convenção Européia de Direitos do Homem, Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais)”.129
128 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 76.154/PR. Rel. Min. Oswaldo Trigueiro. Disponível em www.stf.gov.br.
129 J. J. G. CANOTILHO, Direito constitucional, 6 ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 23.
De acordo com alguns doutrinadores, como bem esclarece a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua opinião consultiva n. 2, de setembro de 1982: “Al aprobar estos tratados sobre drechos humanos, los Estados se someten a un orden legal dentro del cual ellos, por El bien común, assumen varias obligaciones, no en relacion com otros Estados, sino hacia los indivíduos bajo su jurisdicción”, é inegável o caráter especial que justifica o status constitucional atribuído aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.
Como já mencionado, Flávia PIOVESAN e Celso LAFER defendem que os tratados internacionais de direitos humanos anteriores à Constituição de 1988, aos quais o Brasil aderiu e que foram validamente promulgados, inserindo-se na ordem jurídica interna, têm a hierarquia de normas constitucionais, pois foram como tais recepcionados pelo § 2º do art. 5º não só pela referência nele contida aos tratados, como também pelo dispositivo que afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados.
Assim, para esses doutrinadores, os tratados internacionais de direitos humanos a que o Brasil aderiu e recepcionou no seu ordenamento jurídico desde a Constituição de 1988 até a Emenda Constitucional 45, entre os quais se incluem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Americana de Direitos Humanos, não podem ser encarados como tendo apenas a hierarquia de leis ordinárias.
De acordo com o professor LAFER, as normas desses tratados são materialmente constitucionais por integrarem o bloco de constitucionalidade, ou seja, um conjunto normativo que contém disposições, princípios e valores que, no caso, em consonância com a Constituição de 1988, são materialmente constitucionais ainda que estejam fora do texto da Constituição.
Nesse sentido, ensina o professor Celso LAFER que: “O bloco de constitucionalidade é, assim, a somatória daquilo que se adiciona à Constituição escrita, em função dos valores e princípios nela consagrados. O bloco de constitucionalidade imprime rigor à força normativa da Constituição e é por isso parâmetro hermenêutico, de hierarquia superior, de integração, complementação e ampliação do universo dos direitos constitucionais previstos, além de critério de preenchimento de eventuais lacunas”.130
130 C. LAFER, A Internacionalização, p. 17.
Reiterando esse entendimento, o professor Alberto do AMARAL JÚNIOR explica que “é lícito concluir que os tratados internacionais de direitos humanos integrantes do bloco de constitucionalidade revogam todas as normas inferiores que os contrariarem, tenham ou não procedência temporal. Sob esse prisma, não é relevante se a norma referida é anterior ou posterior ao advento do tratado. O simples fato de revestir posição hierárquica superior lhe dá incontestável primazia, quando em confronto com eventuais normas colidentes”. 131
Segundo German J. Bitart CAMPOS, dizer que uma norma tem a mesma hierarquia das normas constitucionais, ou seja, dizer que os tratados de proteção aos direitos humanos têm hierarquia constitucional, não significa dizer que estão eles dentro da Constituição, mas sim que pertencem ao bloco de constitucionalidade. 132
Assim, os direitos internacionais provenientes de tratados, em face da cláusula de não exclusão do § 2º do art. 5º da Carta de 1988, passam a incluir-se no chamado bloco de constitucionalidade e não no texto constitucional propriamente dito.133
Celso de ALBUQUERQUE MELLO, em sua obra, empresta hierarquia constitucional aos tratados internacionais, destacando o Pacto de São José da Costa Rica, e vai além ao ponto de afirmar que “a norma internacional prevalece sobre a norma constitucional naquele caso em que uma Constituição posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada”.134
Marcelo Ribeiro de OLIVEIRA, ao defender a hierarquia constitucional do Pacto de São José da Costa Rica, afirma que: “A norma prevista no § 2º do art. 5º da Magna Carta consagra o espírito ideológico da Constituição, de maior democracia e abertura, possibilitando o incremento da Constituição com mais direitos não previstos em seu corpo quando da promulgação, excluindo uma visão mais limitada da Constituição”.135
Seguindo a mesma orientação, MAZZUOLI explica: “O que ocorre é que o parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal de 1988, como se pode perceber, tem um caráter eminentemente aberto, pois dá margem à entrada ao rol dos direitos e garantias consagrados na Constituição, de outros direitos e garantias provenientes dos tratados internacionais de que a República do Brasil seja parte, o que passa a revelar o caráter não fechado e não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais.136
131 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 487.
132 G. J. B. CAMPOS, Tratado Elementar de Derecho Constitucional Argentino, Buenos Aires, Editar Sociedad Anônima, 1995, p. 285.
133 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 123.
134 C. de ALBUQUERQUE MELLO, Curso de Direito Internacional Público, p.94.
135 M. R. OLIVEIRA, Prisão Civil na Alienação Fiduciária em Garantia, Curitiba, Juruá, 2000, p. 61.
136 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 118.
Conforme ensina o doutrinador, o Pacto de São José da Costa Rica, por permissão expressa da própria Constituição, ingressando na ordem jurídica brasileira com natureza de norma constitucional, faz com que o artigo 5º, LXVII da Magna Carta deva ser interpretado de forma a não mais fazer referência ao depositário infiel, haja vista estar vedada a sua prisão após o ingresso do produto normativo deste tratado ao texto constitucional, devendo, portanto, ser o referido inciso lido da seguinte maneira: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”.137
Dessa forma, para esses juristas, “o § 2º do art. 5º da Carta da República admite que tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico brasileiro no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais e, assim sendo, os tratados de direitos humanos são considerados normas constitucionais de eficácia plena, ou seja, produzem, ou têm possibilidade de produzir, todos os efeitos essenciais, relativamente aos interesses, comportamentos e situações, que o legislador constituinte, direta e normativamente, quis regular”.138
Assim, a eficácia dos aludidos tratados, seguindo esse entendimento, não exige nenhum outro instrumento para a sua aplicabilidade, por força de disposição expressa na Constituição Federal, art. 5º, § 1º, segundo o qual: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Desse modo, se as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, têm, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata.
Em lição, MAZZUOLI ressalta que o Pacto de São José da Costa Rica, pela sua característica primordial, ou seja, por ser um tratado protetor de direitos e garantias fundamentais, além de seu status constitucional enquanto produto internacional devidamente incorporado ao ordenamento jurídico pátrio, deve ser respeitado, assumindo o Estado brasileiro uma obrigação negativa, no sentido de não legislar de modo diverso ao conteúdo do acordo, e reconhecendo a sua eficácia e aplicabilidade no âmbito interno como norma verdadeiramente constitucional (art. 5º, §§ 1º e 2º c/c art. 60, § 4º, IV, CF).
137 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 178.
138 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 101.
Nesse sentido, para o autor, é cláusula pétrea a impossibilidade de qualquer tipo de prisão civil por dívida que não seja a do devedor de obrigação alimentar.139
O Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do RHC 18799, tendo como relator o Ministro José DELGADO, em maio de 2006, decidiu: “(…) o §3º do art. 5º da CF/88, acrescido pela EC n.45, é taxativo ao enunciar que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ora, apesar de à época o referido Pacto ter sido aprovado com quorum de lei ordinária, é de se ressaltar que ele nunca foi revogado ou retirado do mundo jurídico, não obstante a sua rejeição decantada por decisões judiciais.
De acordo com o citado §3º, a Convenção continua em vigor, desta feita com força de emenda constitucional. A regra emanada pelo dispositivo em apreço é clara no sentido de que os tratados internacionais concernentes a direitos humanos nos quais o Brasil seja parte devem ser assimilados pela ordem jurídica do país como normas de hierarquia constitucional. Não se pode escantear que o §1º supra determina, peremptoriamente, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Na espécie, devem ser aplicados, imediatamente, os tratados internacionais de que o Brasil seja parte. O Pacto de São José da Costa Rica foi resgatado pela nova disposição (§3º do art. 5º), a qual possui eficácia retroativa. A tramitação de lei ordinária conferida à aprovação da mencionada Convenção (…) não constituirá óbice formal de relevância superior ao conteúdo material do novo direito aclamado, não impedindo a sua retroatividade, por se tratar de acordo internacional pertinente a direitos humanos”.
Para PIOVESAN, este julgado revela a hermenêutica adequada a ser aplicada aos direitos humanos, inspirada por uma lógica e racionalidade material, ao afirmar o primado da substância sob a forma.
Em 12/03/08, no julgamento do RE 466343, o Min. CELSO DE MELLO, que votou pela inadmissibilidade da prisão civil do depositário infiel, defendeu a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil teriam hierarquia constitucional.
O Ministro destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados: 1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir
139 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 179.
se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2º do art. 5º da CF; 2) os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3º do art. 5º da CF; 3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso país aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade, caso do Pacto de São José da Costa Rica.140
À luz do princípio da máxima efetividade constitucional, advertiu o Ministro CELSO DE MELLO que “o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário. (…) É dever dos órgãos do Poder Público –e notadamente dos juízes e Tribunais –respeitar e promover a efetivação dos direitos humanos garantidos pelas
Constituições dos Estados nacionais e assegurados pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um constitucionalismo democrático aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos básicos da pessoa humana”.
Assim, sob esta perspectiva, inspirada na lente “ex parte populi” e no valor ético fundamental da pessoa humana, o Ministro CELSO DE MELLO reavaliou seu próprio entendimento sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, para sustentar a existência de um regime jurídico misto, baseado na distinção entre os tratados tradicionais e os tratados de direitos humanos, conferindo aos últimos hierarquia constitucional. Nesse sentido, argumentou: “Após longa reflexão sobre o tema, (…) julguei necessário reavaliar certas formulações e premissas teóricas que me conduziram a conferir aos tratados internacionais em geral (qualquer que fosse a matéria neles veiculadas), posição juridicamente equivalente à das leis ordinárias. As razões invocadas neste julgamento, no entanto, convencem-me da necessidade de se distinguir, para efeito de definição de sua posição hierárquica em face do ordenamento positivo interno, entre as convenções internacionais sobre direitos humanos (revestidas de “supralegalidade”, como sustenta o eminente Ministro Gilmar Mendes, ou impregnadas de natureza constitucional, como me inclino a reconhecer) e tratados internacionais sobre as demais matérias (compreendidos estes numa estrita perspectiva de paridade normativa com as leis ordinárias). (…) Tenho para mim que uma abordagem hermenêutica fundada em premissas axiológicas que dão significativo realce e expressão ao valor ético-jurídico –constitucionalmente consagrado (CF, art.4º, II) –da “prevalência dos direitos humanos” permitirá, a esta Suprema Corte, rever a sua posição jurisprudencial quanto ao relevantíssimo papel, à influência e à eficácia (derrogatória e inibitória) das convenções internacionais sobre direitos humanos no plano doméstico e infraconstitucional do ordenamento positivo do Estado brasileiro. (…) Em decorrência dessa reforma constitucional e, ressalvadas as hipóteses a ela anteriores (considerado, quanto a estas, o disposto no parágrafo 2º do art.5º da Constituição), tornou-se possível, agora, atribuir, formal e materialmente, às convenções internacionais sobre direitos humanos, hierarquia jurídico-constitucional, desde que observado, quanto ao processo de incorporação de tais convenções, o “iter” procedimental concernente ao rito de apreciação e de aprovação das propostas de Emenda à Constituição, consoante prescreve o §3º do artigo 5º da Constituição. (…) É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC n. 45/2004, pois, quanto a elas, incide o §2º do artigo 5º da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade. (…) Cabe, portanto, ao Supremo Tribunal Federal o desafio de reafirmar sua vocação de guardião da Constituição, rompendo em definitivo com a jurisprudência anterior acerca da legalidade ordinária dos tratados de direitos humanos e, a partir de uma interpretação evolutiva, avançar na defesa da força normativa constitucional destes tratados, conferindo máxima efetividade à dimensão material mais preciosa da Constituição –os direitos fundamentais.”
140 RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 12.3.2008.
No mesmo sentido, segue ementa:
“‘HABEAS CORPUS’ -PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO JUDICIAL – A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA -CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) – HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS -PEDIDO DEFERIDO.” (HC 96.234/MS, Rel. Min. MENEZES IREITO)
V.4.1.3. Do Pacto de São José da Costa Rica com Status Supraconstitucional.
Agustin GORDILLO, ao defender que os tratados de direitos humanos têm grau supraconstitucional, explica: “La supremacia del orden supranacional por sobre El orden nacional preexistente no puede sino ser supremacia jurídica, normativa, provista de fuerza coactiva, de imperatividad. Estamos en suma ante un normativismo supranacional. Concluimos pues que lãs características de La Constitucion como orden jurídico supremo en El derecho interno, son aplicables en un todo a las normas de La Convencion em cuanto orden jurídico supremo supranacional. No dudamos que muchos intérpretes se resistirán a considerarlo derecho spranacional y supraconstitucional sin perjuicio de los que ya se niegan a considerarlo siquiera derecho interno, o derecho a secas”.141
Nesta mesma direção, André Gonçalves PEREIRA e Fausto de QUADROS: “No Brasil, a Constituição de 1988 não regula a vigência do Direito Internacional na ordem interna, salvo quanto aos tratados internacionais sobre os Direitos do Homem, quanto aos quais o art. 5º, §2º, contém uma disposição muito próxima do art. 16 n.1, da Constituição da República Portuguesa de 1976, que deve ser interpretada como conferindo grau supraconstitucional àqueles tratados (…). Ao estabelecer que os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das regras aplicáveis do Direito Internacional, o seu art. 16, n.1, ainda que implicitamente, está a conceder grau supraconstitucional a todo o Direito Internacional do Direitos do Homem, tanto de fonte consuetudinária, como convencional. De fato, à expressão ‘não excluem’ não pode ser concedido um alcance meramente quantitativo: ela tem de ser interpretada como querendo significar também que, em caso de conflito entre as normas constitucionais e o Direito internacional em matéria de direitos fundamentais, será este que prevalecerá. E adicionam os autores: “Quanto aos demais tratados de Direito Internacional Convencional particular, aí sim, pensamos que eles cedem perante a Constituição, mas tem valor supralegal, isto é, prevalecem sobre a lei interna, anterior e posterior. Ou seja, adotamos a posição que se encontra expressamente consagrada nas Constituições francesa, holandesa e grega”. No mesmo sentido ainda, afirma Herman MONTEALEGRE: “En principio se acepta por nuestros derechos internos, hoy día, que el Derecho internacional de los Derechos Humanos tiene primacía sobre el derecho interno” (Posición que ocupa el Derecho Internacional de los Derechos Humanos em relación com la jerarquía normativa del sistema jurídico nacional, posible conflicto entre normas incompatibles, Derecho Internacional de los Derechos Humanos, Uruguay: Comisión Internacional de Juristas – Colegio de Abogadoss del Uruguay, 1993, p. 20)”.142
Fundación de Derecho Administrativo, 1990, p. 53 e 55.
141 A. GORDILLO, Derechos Humanos – doctrina, casos y materiales – parte general, Buenos Aires,
V.4.1.4. Da posição atual do STF: Pacto de São José da Costa Rica com Status Supralegal, mas Infraconstitucional.
O Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, por ocasião do julgamento do RHC n. 79.785RJ, no Supremo Tribunal Federal, em maio de 2000, que envolvia o alcance interpretativo do princípio do duplo grau de jurisdição, previsto pela Convenção Americana de Direitos Humanos, ressaltou, em seu voto: “Desde logo, participo do entendimento unânime do Tribunal que recusa a prevalência sobre a Constituição de qualquer convenção internacional (cf. decisão preliminar sobre o cabimento da ADIn 1.480, cit., Inf. STF 48)”.
E prosseguiu: “Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande freqüência, precisamente porque — alçados ao texto constitucional — se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (Hans KELSEN, Teoria Geral do Direito e do Estado, trad. M. Fontes, UnB, 1990, p. 255). Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5º § 2º, da Constituição seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização de direitos humanos. Ainda sem certezas suficientemente amadurecidas, tendo assim — aproximando-me, creio, da linha desenvolvida no Brasil por CANÇADO TRINDADE (Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção de direitos humanos nos planos internacional e nacional em Arquivos de Direitos Humanos, 2000, 1/3, 43) e pela ilustre Flávia PIOVESAN (A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, em E. Boucault e N. Araújo (org.), Os Direitos Humanos e o Direito Interno) — a aceitar a outorga de força supralegal às convenções de direitos humanos, de modo a dar aplicação direta às suas normas — até, se necessário, contra a lei ordinária — sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes”.
O Ministro Gilmar MENDES, no voto que proferiu no julgamento do RE 466.343, em 22 de novembro de 2006, propôs o retorno da jurisprudência da Suprema Corte ao entendimento que predominou nas décadas de 40 e 50, segundo o qual os tratados internacionais gozam de status infraconstitucional, porém supralegal. Salientou o Ministro:
“(…) A inovação introduzida pelo art. 5º, § 3º da Constituição Federal acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (…) A mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n. 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. (…) É preciso lembrar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, por longo tempo, adotou a tese do primado do direito internacional sobre o direito interno infraconstitucional. Cito, a título exemplificativo, os julgamentos das Apelações Cíveis 9.587, de 1961, relator Orozimbo Nonato, e 7.872, de 1943, relator Pliladelpho Azevedo. Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (…) Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. (…) Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Constituição Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, LXVII, da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel. (…) Deixo acentuado, também, que a evolução jurisprudencial sempre foi uma marca de qualquer jurisdição constitucional. (…) Tenho certeza de que o espírito desta Corte, hoje, mais que nunca, está preparado para essa atualização jurisprudencial”.
142 Manual de direito internacional público, 3 ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 103 e 117.
Tal entendimento consagra a hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, dos tratados internacionais de direitos humanos, distinguindo-os dos tratados tradicionais. Divorcia-se, dessa forma, da antiga tese majoritária do STF a respeito da paridade entre tratados internacionais e leis federais.
Em sessão plenária de 3/12/08, os ministros STF concederam um Habeas Corpus a um depositário infiel, baseados no entendimento unânime de que os tratados internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, entre eles o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívidas, são hierarquicamente superiores às normas infraconstitucionais. A elevação desses tratados à condição de norma com força constitucional, porém, não teve a maioria dos votos da Corte, que preferiu reconhecer somente que os acordos ratificados têm efeito supralegal.
O caso que levou o assunto à discussão dos ministros foi o de um empresário preso em Tocantins por não cumprir um acordo firmado em contrato, de que manteria sob sua guarda 2,7 milhões de sacas de arroz, tidas como garantia do pagamento de uma dívida.
Detido como depositário infiel, Alberto de Ribamar Ramos Costa pediu Habeas Corpus, alegando que tratados internacionais assinados pelo Brasil, como o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos proíbem a prisão civil, exceto nos casos de inadimplência voluntária de pensão alimentícia. O acusado afirmou que a Emenda Constitucional 45, de 2004, elevou tratados internacionais de Direitos Humanos à hierarquia de norma constitucional, superior ao Código de Processo Civil, que regulamenta a prisão de depositário infiel.
A votação havia sido suspensa no início do ano de 2008, quando o ministro MENEZES DIREITO pediu vista do processo. Em seu voto, o ministro reconheceu o tratamento especial a ser dado aos tratados sobre Direitos Humanos, mas posicionou-se contrário à equiparação a normas constitucionais.
Os demais ministros seguiram em parte o entendimento. Por unanimidade, eles entenderam que, embora a própria Constituição Federal preveja a prisão do depositário, os tratados sobre Direitos Humanos ratificados pelo Brasil são superiores às leis ordinárias, o que esvazia as regras previstas no Código de Processo Civil, do Código Civil e do Decreto- Lei 911/69 quanto à pena de prisão. Sem regulamentação, as previsões da Constituição quanto à prisão perdem a efetividade, já que não são de aplicação direta.
Embora tenha dado um passo importante em direção ao reconhecimento de normas internacionais de Direitos Humanos, o Supremo foi cauteloso quanto à elevação automática desses tratados à categoria de emenda constitucional, como queriam os ministros CELSO DE MELLO, Cezar PELUSO, Eros GRAU e Ellen GRACIE. “A Constituição Federal não deve ter receio quanto aos direitos fundamentais”, disse o ministro Cezar Peluso, ao lembrar que os direitos humanos são direitos fundamentais com primazia na Constituição.
A orientação vencedora foi a do presidente do tribunal, ministro Gilmar Mendes, seguido pelos ministros MARCO AURÉLIO, Ricardo LEWANDOWSKI, CARMEN LÚCIA e MENEZES DIREITO. O ministro Gilmar MENDES ressaltou: “Eu mesmo estimulei a abertura dessa discussão, mas as conseqüências práticas da equiparação vão nos levar para uma situação de revogação de normas constitucionais pela assinatura de tratados”. De acordo com o ministro, a equiparação à Constituição dos textos dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que o Brasil é signatário seria um “risco para a segurança jurídica” e, para ter força constitucional, mesmo os tratados anteriores à EC nº 45 devem seguir o rito das emendas constitucionais.
Assim, a prisão do depositário infiel não foi considerada inconstitucional, pois sua previsão segue na Constituição (que é, segundo os ministros, superior aos tratados), mas, na prática, passou a ser ilegal. Para os doutrinadores, a decisão veio dizer que já não é cabível a prisão de depositário infiel no Brasil, pois as leis que operacionalizam esse tipo de medida coercitiva estão ‘abaixo’ dos tratados internacionais de direitos humanos.
Por maioria, a Corte decidiu que a Constituição previu, para a ratificação dos tratados, procedimento de aprovação no Congresso Nacional igual ao de emenda constitucional, ou seja, de maioria de dois terços na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em dois turnos em cada casa.
Assim, por unanimidade, os ministros concederam o Habeas Corpus e deram à Emenda Constitucional 45/04 a interpretação de que os tratados internacionais de Direitos Humanos têm força supralegal, mas infraconstitucional.
Firmou-se, então, a tese de que não mais existe, no modelo normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária independentemente da modalidade de depósito.
Tal entendimento foi reafirmado pelo ministro CELSO DE MELLO, do Supremo Tribunal Federal, em 09/06/09, ao deferir um Habeas Corpus de um depositário, contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, tendo citado vários precedentes da Corte, dentre eles, o julgamento do HC 92.566/SP, de relatoria do ministro MARCO AURÉLIO, que declarou expressamente revogada a Súmula 619 da corte, a qual autorizava a decretação da prisão civil do depositário judicial no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente do prévio ajuizamento da ação de depósito.
O ministro ressaltou que, pelo fato de o Brasil ter aderido ao Pacto de São José da Costa Rica, que permite a prisão civil por dívida apenas na hipótese de descumprimento inescusável de prestação alimentícia, não é cabível a prisão civil do depositário, qualquer que seja a natureza do depósito. Nesse sentido, afirmou: “Vê-se, daí, que a decretação da prisão civil do depositário infiel, inclusive a do depositário judicial, constitui ato arbitrário, sem qualquer suporte em nosso ordenamento positivo, porque absolutamente incompatível com o sistema de direitos e garantias consagrado na Constituição da República e nos tratados internacionais de direitos humanos. (…) A análise dos fundamentos em que se apóia a presente impetração leva-me a concluir que a decisão judicial de primeira instância, mantida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo E. Superior
Tribunal de Justiça, não pode prevalecer, eis que frontalmente contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e à Constituição da República, considerada, no ponto, a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em causa, no sentido de que não mais subsiste, em nosso ordenamento positivo, a prisão civil do depositário infiel, inclusive a do depositário judicial. Evidente, desse modo, a situação de injusto constrangimento imposta ao ora paciente.”
Segue ementa do julgado:
“HABEAS CORPUS”. PRISÃO CIVIL. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA. TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. A JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ILEGITIMIDADE JURÍDICA DA DECRETAÇÃO DA PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
-Não mais subsiste, no modelo normativo brasileiro, a prisão civil por infidelidade depositária, independentemente da modalidade de depósito, trate-se de depósito voluntário (convencional) ou cuide-se de depósito necessário, como o é o depósito judicial. Incabível, desse modo, no sistema constitucional vigente no Brasil, a decretação de prisão civil do depositário infiel. (MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 98.893-8 São Paulo, Relator Min. Celso de Mello)”.
No mesmo sentido, seguem demais ementas:
“RECURSO. Extraordinário. Provimento Parcial. Prisão Civil. Depositário infiel. Possibilidade. Alegações rejeitadas. Precedente do Pleno. Agravo regimental não provido. O Plenário da Corte assentou que, em razão do status supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel.” (RE 404276 AgR, Relator: Min. Cezar Peluso, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-071, 16-04-2009) .
“PRISÃO CIVIL. Inadmissibilidade. Depósito judicial. Depositário infiel. Infidelidade. Ilicitude reconhecida pelo Plenário, que cancelou a súmula 619 (REs nº 349.703 e nº 466.343, e HCs nº 87.585 e nº 92.566). Constrangimento ilegal tipificado. HC concedido de oficio. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” (HC 94307, Relator Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 19/02/2009, DJe-084, 07-05-2009)
“DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel.” (HC 89634, Relator: Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 24/03/2009, DJe-079, 29-04-2009) V.4.2. Da Polêmica a Respeito da Abrangência da Palavra “Dívida” e da Prisão do Fiduciante Devedor.
Além da polêmica a respeito do status do Pacto de São José da Costa Rica no ordenamento brasileiro, discutiu-se também, na doutrina e na jurisprudência, sobre a abrangência do termo ‘dívida’, empregado no Pacto de São José da Costa Rica, se abarca ou não a situação do depositário infiel, isto é, se o depositário infiel pode ser considerado inadimplente em uma dívida, e se o fiduciante pode ser considerado depositário para fins de prisão civil.
Segundo Paulo Sérgio RESTIFFE e Paulo RESTIFFE NETO, é fato que os textos constitucionais, a partir de 46, ao proibir a prisão por dívida, expressamente ressalvam as hipóteses de inadimplemento de obrigação alimentar e de infidelidade do depositário, o que fornece argumento para sustentar que o termo dívida foi empregado com amplitude e abrangeria aqueles casos, se não excepcionados.143
No entanto, tal posicionamento não é pacífico na doutrina e nem na jurisprudência. Para alguns juristas, conforme explicou o Ministro Eduardo RIBEIRO, no julgamento do REsp 149.518-GO, de 5 de maio de 1999, “não era indispensável a referência ao depositário, que a cautela do constituinte levou a fazer. Terá sido recomendável para afastar a dúvida. Daí não se haverá de extrair elemento interpretativo, com a força pretendida, em relação a texto de tratado, elaborado por representantes de diversos países, não se podendo presumir hajam tido em conta as peculiaridades na relação de norma 143 RT vol. 756, p. 41. constante da Constituição de um deles. (…) O que recebe coisa alheia para guardar, obrigando-se a devolvê-la quando isso for reclamado pelo proprietário e se recusa a fazê-lo não é um simples inadimplente no pagamento de dívida. Seu procedimento envolve a malícia da apropriação indébita. Assim também não pode ser considerada detenção por dívidas a daquele que se furta à entrega do bem que lhe foi confiado em virtude de penhora, ainda que seja ele de sua propriedade. Estará aí exercendo um múnus público e a recusa em entregar a coisa implicará descumprimento desse, algo bem diverso do não pagamento de dívida”.
No mesmo sentido, no já citado julgamento do HC nº 72.131, o plenário do STF julgou, por maioria, regular a prisão do depositário infiel, vencidos os Ministros MARCO AURÉLIO, Francisco REZEK, Carlos VELLOSO e SEPÚLVEDA PERTENCE. A tônica da decisão foi de que a Constituição proíbe a prisão por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega do bem sobre o qual tem a posse imediata.
Contrariamente ao acima exposto, interessante apontar alguns argumentos do voto vencedor do Ministro Antônio Carlos MALHEIROS, no extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, na ocasião do julgamento da Ap. 613.053-8, da Comarca de Jaú, em 1995: “Os princípios emanados nos tratados internacionais a que o Brasil tenha ratificado equivalem-se às próprias normas internacionais. (…) Isto posto, com base no Pacto de São José da Costa Rica, impossível a prisão civil do depositário infiel. (…)
Argumentou-se, contrariamente, que não poderia ser aplicada a mencionada cláusula do Pacto, uma vez que a prisão não se daria por dívida, mas porque a sanção decorreria de descumprimento de obrigação de entregar coisa certa e não pertencente ao depositário. Mas, mesmo que tal conclusão fosse correta (e, data vênia, não é, pois o tal “descumprimento de obrigação de entregar coisa certa e não pertencente ao “depositário” decorre, de maneira direta, do não pagamento de dívida, e isto é o que é importante), melhor sucesso não teria. (…) Como ensina o ilustre professor Clèmerson Merlin Clève, “a proteção dos direitos do homem no sistema americano interdita a privação da liberdade por dívida, exceto em caso de obrigações alimentares, sendo que a palavra ‘dívida’ compreende toda sorte de dívidas civis, inclusive aquelas relativas a obrigações públicas, como as fiscais”. Como se não bastasse, temos também, em nossa legislação, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o qual proíbe a prisão para hipótese de descumprimento de obrigação contratual, erigindo-se com o garantia constitucional, por força do §2º do art. 5º da Lei Maior. Diante destes textos legais, de alcance constitucional inclusive, fica definitivamente afastada a possibilidade de prisão em decorrência da não entrega do bem, remanescendo a obrigação civil de sua entrega física, ou do seu equivalente em dinheiro, com possibilidade de execução pelo valor devido.
Assim, difícil contrariar-se a tese de impossibilidade de prisão do depositário infiel”.144
Quanto à possibilidade de prisão do fiduciante inadimplente como depositário infiel, para fins de prisão civil, muito se discute. Para alguns, essa possibilidade é plenamente possível, em virtude do art. 652 do Código Civil. Para outros, essa equiparação não pode ser feita, chegando a afirmar que considerar o fiduciante como depositário infiel é uma ficção jurídica utilizada para empregar a coerção corporal como meio de forçar o pagamento do débito.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2000, decidiu, por unanimidade, que: “Descabe a prisão civil amparada em mera equiparação legal ou contratual, pois fere norma constitucional e que não admite interpretação extensiva. A Constituição anterior admitia equiparação legal ao depositário, pois remetia à legislação específica para os efeitos de decretação de prisão civil do equiparado ao depositário. No entanto, segundo o art. 5º, inc. LXVII, da atual Constituição Federal, a prisão civil somente é possível para as hipóteses de depositário infiel e inadimplemento de obrigação alimentar. Não existindo possibilidade de equiparação, desaparece a possibilidade de prisão, embora admitida a ação de depósito. E assim se tem decidido para resguardar direitos e garantias individuais do cidadão. Assim, só é constitucional a prisão do depositário propriamente dito, e não das figuras a ele equiparadas, como no caso, já que se trata de obrigação de pagar uma dívida”.145
No mesmo sentido, vale transcrever a ementa da Apelação Cível 192.240.448:
“Prisão civil. Após a vigência da Constituição de 1988, descabe a prisão civil em situações que são meras equiparações legais à figura do depositário. Inexistindo depósito e sim mera equiparação contratual, descabe a cominação de prisão. Precedentes do STJ. Apelação desprovida”.146
Destaca-se, também, a ementa da Apelação Cível 196.079.545: “Alienação fiduciária. Busca e apreensão convertida em ação de depósito. Prisão civil incabível. A prisão civil, a teor do novo texto constitucional, só é admissível em hipótese de depósito para a guarda de bem alheio, e não em casos de depósito em garantia, como acontece nos contratos de alienação fiduciária, por ter sido retirada do legislador ordinário a possibilidade de equiparações como esta. Apelação desprovida”. 147
144 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 193.
145 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 199.
146 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 199.
Ainda nesse sentido, o STJ, no julgamento dos embargos de divergência em Recurso Especial 149.518-GO, em que foi relator o Ministro Ruy ROSADO DE AGUIAR, assim se pronunciou: “Alienação Fiduciária. Prisão civil. Não cabe a prisão civil de devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. Estamos diante de um conflito de normas que dispõem a respeito da liberdade de um cidadão. Nesse passo, não cabe interpretar-se extensivamente contra a ponto de acabar restringindo um dos direitos fundamentais. Embargos acolhidos e providos”.148
Interessante ressaltar as palavras de Waldirio BULGARELLI quanto ao tema: “Ao infeliz fiduciante (devedor) resta bem pouco, posto que nunca se viu tão grande aparato legal concedido em favor de alguém contra o devedor. Assim, não pode discutir os termos do contrato, posto que, embora ‘disfarçado’ em contrato-tipo, o contrato de financiamento com garantia fiduciária é efetivamente contrato de adesão, com as cláusulas redigidas pela financeira, impressas, e por ela impostas ao financiado; não é sequer, o devedor, um comprador que está em atraso, posto que por um passe de mágica do legislador, foi convertido em DEPOSITÁRIO (naturalmente, foi mais fácil enquadrá-lo, por um decretolei, entre os depositários, do que reformar a Constituição, admitindo mais um caso de prisão por dívidas) (…). Trate, por isso, o devedor, de jamais se atrasar e nunca, mas nunca, pense em não pagar sua dívida, posto que o mundo inteiro ruirá sobre si, e fique feliz se não for preso”.149
O doutrinador entende impossível a equiparação entre depositário e alienante fiduciário já que, ao disciplinar o tema, tratando do depositário infiel, a Constituição Federal traçou parâmetros certos, que não poderiam ter sido rompidos por no norma infraconstitucional, segundo o jurista, para o qual o legislador ordinário deve, nos casos permitidos, tratar de forma mais exaustiva sobre estes temas, sendo obrigado, no entanto, a preservar seu núcleo essencial. Para BULGARELLI, lei infraconstitucional poderia sim ter dado conformação legal à figura do depositário infiel, mas, em momento algum, foi permitido que esta viesse a redesenhar o instituto. Nestes moldes, a alienação fiduciária apareceria como uma equiparação legal ao depósito, ou seja, um depósito atípico, não sendo, portanto, possível a aplicação da prisão civil.
147 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 197.
148 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 201.
149 W. BULGARELLI, Contratos Mercantis, São Paulo, Atlas, 2000, p.112.
Orlando GOMES, em lição, afirma que “O devedor-fiduciante não é, a rigor, depositário, pois não recebe a coisa para guardar, nem o credor-fiduciário a entrega para este fim, reclamando-a quando não mais lhe interessa a custódia alheia”.150
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento neste sentido: “Reconhecer à lei ordinária a possibilidade de equiparar outras situações, substancialmente diversas, à do depositário infiel, para o fim de tornar aplicável a prisão civil, equivale a esvaziar a garantia constitucional”.151
Em outro julgado, decidiu: “(…) O instituto da alienação fiduciária é uma verdadeira ‘aberratio legis’: o credor-fiduciário não é proprietário; o devedor-fiduciante não é depositário; o desaparecimento involuntário do bem fiduciário não segue a milenar regra da ‘res perit domino suo’”.152
Tais decisões reiteram o fato de que, podendo valer-se do recurso à privação da liberdade do devedor, torna-se secundária a preocupação do credor em utilizar-se dos meios processuais comuns para reaver seu crédito, como a execução da dívida.
A aplicação da prisão civil ao devedor fiduciante sofreu grande flexibilidade na doutrina e na jurisprudência. No entanto, com a recente decisão do STF já tratada neste trabalho, as polêmicas a respeito da abrangência da palavra “dívida” e da possibilidade de equiparação do devedor fiduciante ao depositário para fins de prisão estão ultrapassadas.
Isso porque, como já mencionado, em recente decisão, a Corte Maior julgou ilegal a prisão civil por dívida de qualquer tipo de depositário, haja vista a hierarquia supralegal, mas infraconstitucional, da Convenção Americana de Direitos Humanos.
150 O. GOMES, Alienação Fiduciária em Garantia, 4 ed., São Paulo, RT, 1975.
151 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 210.
152 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 216.
VI. DA VIOLAÇÃO DO COMPROMISSO INTERNACIONAL E DA RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL PELA PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL.
Muito se discute a respeito da violação do compromisso internacional assumido pelo Brasil no Pacto de São José da Costa Rica nos casos em que o Judiciário determinou a prisão civil do depositário infiel, a despeito do Pacto, e a possível responsabilidade internacional do Brasil em decorrência desse fato.
A responsabilidade internacional do Estado consiste, para a doutrina, em uma obrigação internacional de reparação em face de violação prévia de norma internacional, apresentando-se como uma característica essencial de um sistema jurídico, como pretende ser o sistema internacional de regras de conduta, tendo como seu fundamento de Direito Internacional o princípio da igualdade soberana entre os Estados.
No julgamento do HC nº 72.131, ao analisar o assunto, a Corte Maior sustentou que o Pacto de São José da Costa Rica, por tratar-se de norma infraconstitucional, não pode se contrapor à permissão constitucional, além de o referido pacto constituir norma de caráter geral, que não derroga normas infraconstitucionais especiais sobre o tema. O Ministro Maurício Corrêa, em seu voto, destacou que não empresta ao Pacto de São José da Costa Rica o elastério que se pretende dar ao seu conteúdo, a pretexto do §2º do artigo 5º da Constituição Federal, sobre os direitos e garantias concedidos pelo ordenamento constitucional, a respeito dos compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte. Segundo o Ministro, “elevar à grandeza de ortodoxia essa hermenêutica seria minimizar o próprio conceito da soberania do Estado-povo na elaboração da Lei Maior”.153
Ao decidir o HC nº 73.044-SP, o Ministro Maurício CORRÊA, da Segunda Turma do Tribunal, alinhando-se àquela orientação, afirmou que “os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte não minimizam o conceito de soberania do Estado-povo na elaboração de sua Constituição; por esta razão, o artigo 7º, VII, do Pacto de São José da Costa Rica deve ser interpretado com as limitações impostas pelo artigo 5º, LXVII da Constituição”. 154
153 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 215.
154 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 215.
No entanto, para os doutrinadores que defendem a impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, o fato de o Brasil ter aderido ao pacto torna forçosa a conclusão de que, hodiernamente, no direito pátrio, não é mais possível a prisão civil do depositário infiel, já que o Pacto de São José da Costa Rica veda a prisão por dívidas, excetuando apenas a decorrente de obrigação alimentar.
Para Luiz Fernando DIEDRICH, “se o Brasil ratificou estes instrumentos sem qualquer reserva no que tange à matéria, não há de se admitir a possibilidade jurídica da prisão civil do depositário infiel”.155
Nas palavras de Valerio de Oliveira MAZZUOLI, “o não cumprimento de um tratado no âmbito interno assemelha-se àquela situação de direito interno em que uma parte de determinado contrato não o cumpre e, por via de conseqüência, fica responsável pelas obrigações decorrentes de tal atitude, como por exemplo, pela obrigação de indenizar”.156
Vale destacar que, segundo a doutrina, em direito internacional não se busca a responsabilidade subjetiva, mas apenas e tão somente a objetiva, pela qual caracteriza-se o ato ilícito (autoria típica de violação de norma de direito internacional) e que pode ser levada a efeito tanto por um chefe de Estado ou de Governo, um diplomata, um ministro ou ainda e também um representante dos demais órgãos componentes do poder legislativo ou judiciário, incorrendo, assim, na possível imputação.
Assim, segundo os doutrinadores, a decisão da Suprema Corte brasileira que determine a prisão civil do depositário infiel e as dos tribunais inferiores que a adotarem pode ensejar a responsabilidade internacional do Brasil, sujeitando-o ao procedimento previsto nos artigos 48 e seguintes da Convenção. De acordo com o artigo 44: “Qualquer pessoal ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado-Parte”.
Nesse sentido, a pessoa condenada à prisão em virtude de inadimplemento de obrigação decorrente da qualidade de fiel depositário pode denunciar a violação da Convenção à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, requerendo as reparações necessárias.
Segundo MAGALHÃES, caso, após o processamento do pedido, sem solução amistosa, fundada no respeito aos direitos humanos reconhecidos na Convenção (art. 48, f), L.F. DIEDRICH, Inconstitucionalidade da Prisão do Depositário Infiel. Texto extraído do Jus Navigandi, Teresina, ago. 2000, disponível em: http://www1.jus.com.br . Acessado em: 26 de Mar. 2009, se o assunto não houver sido solucionado, a Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competirem para remediar a situação examinada e decidirá, ultrapassado tal prazo, pelo voto da maioria, se as medidas foram tomadas e, em caso positivo, se foram adequadas, decidindo, ainda, se publica ou não seu relatório (art. 51). O relatório da Comissão, se publicado, poderá indicar o desrespeito do Estado aos direitos humanos estabelecidos na Convenção, comprometendo a imagem do país no exterior, já prejudicada pelo regime penitenciário a que submete presos comuns, em cadeias com lotação excessiva e incompatíveis com a dignidade humana que a Constituição procura assegurar.
156 V. de O. MAZZUOLI, Prisão, p. 170.
Nesse caso, a Comissão poderá recomendar ao país que se abstenha de dar cumprimento à ordem judicial de prisão civil por dívida ou, em caso de ter havido a prisão proibida pela Convenção, que a vítima receba todas as reparações pertinentes.
Destaca-se que, para MAGALHÃES, nesses casos, não se poderá alegar que a soberania nacional foi invadida, por ter o Brasil, por decisão da cúpula de seu Judiciário, desrespeitado Convenção por ele soberanamente firmada.158
Pode-se dizer que, nos casos em que houver pagamento de indenização à vítima da prisão civil por dívida, caberá o direito de regresso contra o prolator, ou prolatores, da decisão causadora do dano ao erário.
Convém ressaltar, a esse propósito, de acordo com a lição de MAGALHÃES, que a comunidade internacional como um todo tem imposto a responsabilidade pessoal de indivíduos que cometem atos ilícitos, desrespeitosos dos direito humanos.
Vale lembrar que a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violação de direitos humanos passou a ser tema de grande relevância, em especial após o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Daí a urgência da conscientização de todos os agentes públicos, entre eles, os magistrados, da necessidade de cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo a evitar condenações da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
157 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 96.
158 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 97.
159 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 97.
VII. DA COMPETÊNCIA DO STF PARA JULGAR A QUESTÃO.
José Carlos de MAGALHÃES afirma, com a concordância de alguns juristas, que o STF não tem competência para apreciar a polêmica da prisão do depositário infiel. Isso porque o art. 102, III, a, da Constituição prescreve:
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
[…]
III – Julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) Contrariar dispositivos desta Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.”
Assim, segundo os juristas, o STF apreciará apenas a decisão recorrida que contrariar dispositivo da Constituição ou declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. O art. 105 da Constituição, por outro lado, ao tratar da competência do Superior Tribunal de Justiça assevera:
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III – Julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal ou negar-lhes vigência;
b) julgar válida lei ou ato do governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”.
Dessa maneira, tal como ensina o professor Alberto do AMARAL JÚNIOR, a conseqüência dessa divisão de atribuições foi separar com nitidez a esfera de atuação do STF, que deve restringir-se, nesse campo, a examinar a compatibilidade do tratado com a Constituição, da competência delegada ao Superior Tribunal de Justiça, para solucionar os conflitos entre o tratado e as demais normas pertencentes ao sistema jurídico brasileiro.160
A competência para decidir o conflito entre tratado e lei federal pertence ao Superior Tribunal de Justiça e não ao STF, de acordo com MAGALHÃES, que explica que é o que sucede, por exemplo, quando se discute a relação entre a lei anterior e o tratado posterior que a contrarie. Porém, para o doutrinador, o STF resolverá, em última instância, as controvérsias referentes à constitucionalidade das normas que integram o ordenamento jurídico, o que inclui, evidentemente, os tratados.161
O professor AMARAL explica que não há, na questão da prisão do depositário infiel, conflito entre a Convenção Americana e o texto constitucional vigente. A incompatibilidade normativa se apresenta, ao contrário, entre a Convenção Americana e a lei federal que regulou a alienação fiduciária em garantia e permitiu a prisão do depositário infiel, no caso o Decreto-lei 911/69. Logo, o Superior Tribunal de Justiça é a instância adequada para dirimir a questão.162
Destaca-se a decisão do o Ministro Ruy ROSADO DE AGUIAR, relator do processo, no julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999: “Desloca-se a solução, a ser dada na interpretação da lei federal e de tratado vigente, para o STJ, ao qual caberá, como guardião natural do direito infraconstitucional, recolocar a questão legal da prisão civil do infiel depositário nos seus devidos termos: o problema não é mais de inconstitucionalidade, mas simplesmente de (ausência de) legalidade, no confronto do Pacto de São José da Costa Rica com o art. 1.287 do CC e com este último também como fonte de remissão do Dec-lei 911, com reflexo na ação de depósito”.163
O Min. Eduardo RIBEIRO, no julgamento do REsp 149.518-GO, em 5 de maio de 1999, salientou que: “Não olvidando o papel constitucional do STF, entendo que o tema está a merecer reexame do ângulo de norma resultante de tratado internacional que, no âmbito interno, tem hierarquia inferior, cabendo ao STJ velar por sua exata interpretação. Refiro-me ao já citado Pacto de São José da Cosa Rica”.164
160 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 482.
161 J. C. de MAGALHÃES, O Supremo, p. 105.
162 A. do AMARAL JÚNIOR, Introdução, p. 484.
163 O.N.C. Queiroz, Prisão, p. 203.
164 O.N.C. QUEIROZ, Prisão, p. 195.
VIII. DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE.
Sabemos que o homem, por si mesmo, é livre e que a liberdade nasce juntamente com o ser humano. Trata-se de um direito natural, positivado como um direito fundamental e, como tal, inalienável, indisponível e imprescritível, um princípio constitucional enraizado como cláusula pétrea.
De acordo com a doutrina, os direitos fundamentais são resultado de um desenvolvimento histórico da relação entre o homem e o Estado, decorrente de um processo lento de conquistas e retrocessos.
É indiscutível a relevância que se dá aos direitos fundamentais dentro de uma ordem jurídica, tanto que recebem merecido destaque em relação a outras normas, legando às demais patamares hierarquicamente inferiores. De acordo com GUERRA, 165 a lei deixou de ser o centro do universo jurídico em detrimento dos direitos fundamentais, que formam uma nova categoria jurídica, um regime jurídico específico. GONÇALVES, não menos audacioso, elege estes direitos como pedra angular de todo o alicerce jurídico-político.
Para MORAES, os direitos fundamentais “resultam em posições jurídicas das pessoas enquanto tais, com eficácia no âmbito das relações com o Estado ou entre particulares, consubstanciadas ou não na Constituição” 167. Dizem, ainda, os juristas que se trata de conseqüências no plano jurídico, principalmente no constitucional, do desenvolvimento histórico, político e social dos direitos humanos, buscando aplicabilidade e proteção legal dos mesmos.
Segundo os doutrinadores, o caput do art. 5º da Constituição Federal especifica os seguintes direitos fundamentais básicos: vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade, e estes direitos fundamentais básicos constituem o alicerce de todos os demais direitos consagrados nos incisos do art. 5º, nos artigos seqüenciais do Título II, bem como nos demais dispositivos constitucionais.
Importante lembrar que a doutrina clássica divide os direitos fundamentais em gerações,168 conforme a ordem de aparecimento ao longo da história. Os direitos de primeira geração são aqueles que se vislumbraram com a formação do Estado Liberal, surgiram no século XVIII, foram os primeiros direitos do homem positivados nas declarações e têm o indivíduo como titular. Caracterizam uma oposição ao Estado frente ao totalitarismo e compreendem a tutela da vida, liberdade, propriedade, segurança,associação, entre outros.
165 M. L. GUERRA, Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, p. 82.
166 F. J. M. GONÇALVES, Notas para a Caracterização Epistemológica da Teoria dos Direitos Fundamentais in W. S. GUERRA FILHO, Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p. 35.
167 G. P. de MORAES, Direitos Fundamentais: conflitos e soluções, Niterói, Labor Júris, 2000, p. 11.
168A. M. D. LOPES, Hierarquização dos Direitos Fundamentais in Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 34, 2001, p. 174-177.
Os direitos de segunda geração datam do século XIX, basearam-se no desenvolvimento econômico, industrial e no surgimento do proletariado, e fundaram-se nos direitos econômicos e sociais. Também os direitos culturais surgiram neste período.
Encampam os direitos sociais, isto é, o direito ao trabalho, à saúde, à moradia, à educação.
Por último, os direitos de terceira geração, também denominados direitos de solidariedade, são os direitos difusos. Pertencem a esta geração os direitos ao meio ambiente equilibrado, à paz, ao desenvolvimento, os direitos do consumidor e das crianças e dos adolescentes.
De acordo com o artigo 5º, §1º da Lei Maior, os direitos fundamentais caracterizam-se pela sua aplicabilidade imediata, sendo possível dizer que são normas auto-aplicáveis.
José AFONSO DA SILVA, ao citar os caracteres dos direitos fundamentais, informa que este tema foi desenvolvido pelas concepções jusnaturalistas, afirmando ser estes direitos inatos, absolutos, invioláveis e imprescritíveis, e reconhecendo, ainda, que são baseados na historicidade, inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade.
CANOTILHO, em lição, salienta o caráter intemporal e universal destes direitos, querendo dizer que são garantidos a qualquer tempo, para todos os povos.
O direito fundamental à liberdade, imanente à natureza humana, tem vários sentidos, tais como oposição ao autoritarismo, ausência de coação, fazer aquilo que lhe apraz, além de ser expresso pelo antagonismo de cativeiro ou a participação no exercício do Poder, entre outros.
José AFONSO DA SILVA aduz que liberdade consiste na “possibilidade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pessoal”.
Para MONTESQUIEU: “A liberdade é o direito de fazer tudo quanto as leis permitem; e, se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, não mais teria liberdade, porque os outros teriam idêntico poder”.
169 J. AFONSO DA SILVA, Curso, p. 175.
170 J. J. G. CANOTILHO, Direito, p. 359.
171 J. AFONSO DA SILVA, Curso, p. 232.
Pelo fato de viver em sociedade e pela necessidade de maior proteção do interesse coletivo, o direito à liberdade individual pode ser cerceado. Por meio da pena de prisão, o Estado, objetivando a proteção social, retira do indivíduo o direito à liberdade de ir e vir.
BECCARIA, ao tratar sobre o direito de punir, leciona: “Foi a necessidade que impeliu os homens a ceder parte da própria liberdade. É certo que cada um só quer colocar no repositório público a mínima porção possível, apenas a suficiente para induzir os outros a defendê-lo. O agregado dessas mínimas porções possíveis é que forma o direito de punir.
O resto é abuso e não justiça. (…) Eis, então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares. Tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos”.
Destaca-se, assim, que a concepção de maior valor relativa ao direito à liberdade é a noção de liberdade oposta ao cativeiro, ou seja, a liberdade da pessoa física, que é antagônica ao estado de escravidão e prisão ou qualquer empecilho à locomoção pessoal, lembrando que toda e qualquer coação infundada sobre a liberdade de locomoção do indivíduo é passível de ser combatida por meio do habeas corpus. Ressalte-se que, para MAZZUOLI, “não há como se negar que entre a prisão civil e a prisão criminal existe inevitável analogia, uma vez que ambas importam em cerceamento da liberdade”.
Vale ressaltar que qualquer modalidade de prisão ou ato que implique a cessação da liberdade física do indivíduo dilacera e impõe sofrimento. Para FOUCAULT, não há motivos de louvor na atitude de encarcerar o ser humano, para o qual “se é verdade que a prisão sanciona a delinqüência, esta, no essencial, é fabricada num encarceramento e por um encarceramento que a prisão, no fim de contas, continua por sua vez”.
Para os juristas, a própria realidade brasileira demonstra que a liberdade somente pode ser suprimida de qualquer ser humano em “ultima ratio”, devendo sempre ser observados os princípios garantistas consignados na Lei Maior e a posição de estirpe em que se encontra a liberdade frente ao Estado Democrático de Direito.
172 J. J. CHEVALIER, As Grandes Obras Políticas de Maquiavel a Nossos Dias, trad. port. Lydia Cristina, 8 ed., Rio de Janeiro, Agir, 1998, p. 139.
173 C. BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, trad. port. José Cretella Júnior e Agnes Cretella, 2.ed., São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1999, p. 29.
174 V. de O. MAZZUOLI, Alienação Fiduciária em Garantia e a Prisão do Devedor-Fiduciante: uma visão crítica à luz dos direitos humanos, Campinas, Agá Juris, 1999.
175 M. FOUCAULT, Vigiar e punir, trad. port. Raquel Ramalhete, 26 ed., Petrópolis, Vozes, 2002, p.67.
A Constituição brasileira, assim, consagra com amplitude a liberdade de locomoção como direito fundamental e pilar das demais liberdades públicas positivadas. É, portanto, sob esse enfoque, que se deve analisar a questão da prisão civil do depositário infiel.
IX. CONCLUSÃO.
Um dos temas de destaque enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal sempre foi, sem dúvida, a questão acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais no âmbito da pirâmide jurídica. Nessa discussão, merece grandioso enfoque a polêmica referente à prisão civil do depositário infiel.
A Carta Constitucional de 1988, em seu art. 5º, LXVII, consagra a proibição da prisão civil por dívidas, admitindo, todavia, duas exceções: a hipótese do inadimplemento de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. No entanto, com a ratificação pelo Brasil do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica, criou-se uma polêmica a respeito da possibilidade jurídica dessa prisão. A principal discussão vincula-se à posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no direito brasileiro, havendo diversos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a esse respeito.
Em geral, existem quatro posicionamentos: a) supraconstitucionalidade, b) constitucionalidade, c) status de lei ordinária, d) supralegalidade.
A primeira corrente deduz que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos estão acima da própria Constituição Federal. Desse modo, em caso de conflito entre o texto constitucional e a norma internacional, prevalece esta última. Para os críticos desse posicionamento, tal teoria apresenta um grande risco, já que não seria possível exercer o controle de constitucionalidade dessas normas e, mesmo que este fosse exercido, teríamos uma situação um tanto controversa, em que um país decretaria a inconstitucionalidade, logo a inaplicabilidade, de uma norma de direito internacional aprovada por inúmeros outros signatários. Além disso, essa situação é temida por alguns em virtude da natureza vaga da expressão “direitos humanos” e do risco de termos uma fonte normativa constante, alheia a qualquer controle interno.
Há ainda os que defendem o status de constitucionalidade das referidas normas internacionais a partir da análise dos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º do texto constitucional, segundo os quais os direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição não inibem a ratificação de outros advindos dos tratados que, sendo aceitos, teriam aplicação imediata.
Em casos de antinomia, para esses doutrinadores, deveria ser aplicada a norma mais favorável à vítima, seja ela nacional ou internacional, evitando, deste modo, os conflitos.
No entanto, alguns doutrinadores defendem que, em virtude da aprovação da Emenda Constitucional 45/04, de fato, existiria a possibilidade de equiparação dos tratados internacionais relativos a direitos humanos às normas constitucionais; no entanto, haveria necessidade de aprovação mediante quorum qualificado, próprio das emendas constitucionais.
Em sentido contrário, Flávia PIOVESAN afirma que a exigência do quorum de emenda constitucional serviria apenas para conferir à norma internacional o status formal de norma constitucional, já que o caráter material é atribuído desde a adesão ao tratado.
Isso porque, sendo formalmente constitucional, caberiam benefícios como a impossibilidade da denunciação do Tratado pelo Executivo.
Adotando essa teoria, Francisco REZEK analisa a posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados antes do advento do §3º do artigo 5º da Lei Maior, como é o caso do Pacto de São José da Costa Rica e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Isso há de gerar controvérsia entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que, ao promulgar esse parágrafo na Emenda constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abjuratória dos tratados sobre os direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o Congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é uma equação jurídica da mesma natureza daquela que explica que nosso Código Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido à lei complementar desde o momento em que a Carta disse que as normas gerais de direito tributário deveriam estar expressas em diploma dessa estatura”.
Uma terceira corrente defende entendimento no sentido de que todos os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento com o mesmo status das leis ordinárias. Durante muitos anos, essa foi a tese que prevaleceu em nosso país; no entanto, o advent da Emenda nº. 45/04 corroborou a fragilidade dessa teoria, já que deixou clara a natureza especial dos tratados de direitos humanos.
A tese que equipara os tratados de direitos humanos às leis ordinárias teve destaque no julgamento do RE nº. 80.004/SE, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que, havendo antinomia entre normas de direito interno e externo, como ambas têm a mesma hierarquia, deve ser aplicado o princípio de que lei posterior derroga lei anterior (“lex 176J. F. REZEK, Direito: curso elementar, p.114. posterior derrogat legi priori”), não obstante as conseqüências do descumprimento do tratado no plano internacional.
Em 1995, o tema voltou à análise do Supremo, no julgamento do HC nº. 72.131/RJ, que tratava sobre a prisão civil do depositário infiel em caso de alienação fiduciária, ocasião em que o entendimento quanto ao status ordinário foi novamente reafirmado, dizendo-se ainda que o Pacto de São José da Costa Rica é norma geral, não prevalecendo sobre o decreto nº. 911/69, de caráter especial. A mesma tese foi novamente defendida em outras oportunidades, como: RE nº. 206.482-3/SP (1998), HC nº. 81.319-4/GO (2002), em que o Ministro CELSO DE MELLO afirmou:
“A equiparação legal do devedor fiduciante com a do depositário infiel não ofende a Constituição da República, mesmo com a incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ao direito brasileiro, pois este não derroga a nossa legislação ordinária, no ponto em que esta, nos casos de infidelidade depositária, admite a prisão civil”.
Em julgamento recente, o Supremo decidiu pelo status infraconstitucional das normas internacionais referentes a direitos humanos, mas combinado com a supralegalidade em relação às normas ordinárias internas, como é expressamente consagrado pela legislação da Alemanha, França e Grécia, conforme a doutrina.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº. 466.343-1/SP, no qual o Supremo modificou seu posicionamento e aderiu à teoria da supralegalidade, o Ministro Gilmar MENDES, ao comentar o fato de que, no direito tributário brasileiro, vige o princípio da prevalência do direito internacional sobre o direito interno infraconstitucional (art. 98 do CTN), ressaltou: “Há, aqui, uma visível incongruência, pois se admite o caráter especial e superior (hierarquicamente) dos tratados sobre matéria tributária em relação à legislação infraconstitucional, mas quando se trata de tratados sobre direitos humanos, reconhece-se a possibilidade de que os efeitos sejam suspensos por simples lei ordinária”.
Assim, a tese que hoje prevalece no Supremo Tribunal Federal é aquela que atribui status infraconstitucional, mas supralegal aos tratados internacionais de direitos humanos. Decidiu, portanto, nossa Corte Maior pela supremacia da Constituição frente aos Tratados Internacionais, mesmo os que versam sobre Direitos Humanos, que assumem a posição de normas supralegais, e que a prisão civil do depositário infiel (art 5º, inc. LXVII, CF) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O que ocorreu foi que tal dispositivo constitucional deixou de ter aplicabilidade devido ao ‘efeito paralisante’ que os tratados internacionais causaram na legislação infraconstitucional que regula a matéria.
Apesar dessa decisão, cabe ressaltar que a proibição de prisão do depositário infiel ainda causa discórdia na Justiça do Trabalho. Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho do Pará decidiu manter a prisão de um depositário infiel. O acórdão da Seção Especializada I do TRT da 8ª Região, publicado no dia 03/08/09, baseia-se no argumento de que créditos trabalhistas são de natureza alimentar e o inadimplemento nestes casos ainda pode ser punido com prisão sem violar a decisão do Supremo, tratados internacionais assinados pelo Brasil ou a Constituição Federal. Contrariando a decisão do Supremo, o desembargador Georgenor de SOUZA FRANCO, relator do pedido de Habeas Corpus que levantou a discussão no referido tribunal regional, afirmou, ainda, que o Pacto de São José da Costa Rica não adquiriu status de emenda constitucional por não ter sido ratificado pelo quorum necessário no Congresso Nacional, conforme estabelece a Constituição.
Segundo o ministro da Seção Especializada em Dissídios Individuais 2, IVES GANDRA Martins Filho, as dívidas trabalhistas têm caráter alimentar, podendo motivar as prisões. O ministro Alberto BRESCIANI, seguindo o mesmo raciocínio, afirmou: “Não havendo Súmula Vinculante do STF, voto conforme minha consciência”. No entanto, os ministros Barros LEVENHAGEN, EMMANOEL PEREIRA, José SIMPLICIANO, Pedro MANUS e MOURA FRANÇA preferiram seguir a jurisprudência da Corte Maior e concederam o Habeas Corpus no pedido 199.839/2008-000-00-00.3.
É importante, ainda, analisarmos a polêmica existente com relação às cláusulas pétreas trazidas pela Constituição de 1988. Há quem diga que o inc. LXVII do art. 5º é inteiramente imodificável. Deste modo, mesmo que o tratado tivesse status de norma constitucional, sendo equiparado à Emenda, não poderia revogar tal dispositivo, sendo, portanto, inconstitucional qualquer tentativa de se abolir a prisão civil do depositário infiel.
Posicionamento contrário entende que apenas a primeira parte do inciso (“não haverá prisão civil por dívida”) seria cláusula pétrea. O restante se enquadraria na posição de mera exceção de direito, isto é, uma faculdade e não obrigação. Permitiria, portanto, a modificação. Segundo tal entendimento, o Pacto de São José da Costa Rica seria, então, constitucional, podendo revogar a incidência da prisão do depositário infiel.
Quanto à pena de prisão propriamente dita, segundo alguns doutrinadores, o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de inúmeros outros meios de coerção para adimplemento de obrigação, menos gravosos ao devedor não havendo, portanto, nem
adequação nem necessidade dessa sanção. Para os defensores dessa posição, a prisão civil não será necessária se o objetivo almejado puder ser alcançado, como de fato o é, com a adoção de medidas que se revelem, a um só tempo, adequadas e menos onerosas. De fato, ninguém duvida de que as dívidas e compromissos assumidos devem ser satisfeitos. Não seria diferente no caso do depositário. No entanto, conforme ensina a maioria dos doutrinadores, não podemos sobrepor as finanças do credor ao direito à liberdade, direito fundamental, inerente à pessoa humana, do devedor, sob pena, ainda, de violação do princípio da proporcionalidade.
177 A. CRISTO, in Central de Notícias Jurídicas, disponível em: http://cn.trt8.jus.br/. Acessado em: 10 de Ago. 2009.
Entretanto, tal posicionamento não é unânime, apesar de majoritário, tal como demonstram os dizeres de Olavo D´CÂMARA, segundo o qual: “O tratado firmado pelo Brasil, denominado de Pacto de São José da Costa Rica proíbe a prisão civil no caso de devedor fiduciário e refere-se a direitos humanos, mas ressalte-se que os “direitos humanos” não podem prevalecer para os devedores que são oportunistas e que agem de má-fé ou irresponsavelmente”.
Todavia, tal entendimento minoritário causa espanto, já que os Direitos Humanos sempre devem ser respeitados. Como ensina o professor Pablo Stolze GAGLIANO: “A noção de generalidade significa que os direitos da personalidade são outorgados a todas as pessoas, simplesmente pelo fato de existirem”.
Massimo PAVARINI, professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores especialistas em direito penal da Europa, afirmou, numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo de 31/08/09, que “é um pecado, uma idéia louca a noção de que penas maiores de prisão aumentam a segurança. Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais profissional ele sera quando voltar ao crime. (…) O cárcere parecia um invento bom no final de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar. Isso acontece em todos os lugares do mundo. (…) Há um movimento internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. (…) Já se sabia que não dá para ressocializar o preso. (…) A prisão não funciona nos EUA, na Europa nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem comete crimes. O problema é que a neutralização do inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinqüente, significa o fim do estado de direito. (…) Hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga tem mais eficiência. Isso é desastroso. (…) Não faz sentido usar algo tão caro como as prisões para qualquer criminoso”.
178 O. D´CÂMARA, A Prisão do Depositário Infiel, o Pacto de San Jose da Costa Rica e a Carta, disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br. Acessado em: 25 de Mar. 2009.
179 P. S. GAGLIANO, R. PAMPLONA FILHO, Novo Curso de Direito Civil -parte geral, 5 ed., Vol. I, São Paulo, Saraiva, 2004, p.93.
Em face do exposto, parece-nos que, não obstante as teses contrárias, macular a liberdade de ir e vir do ser humano, seja por motivos civis ou criminais, afronta sua natureza. Apenas por questões civis ou administrativas, então, faz-nos voltar a tempos remotos quando a dignidade do homem, enquanto figura humana, com sentimentos, angústias e aflições, não tinha nenhum valor.
Agrava-se a situação e se fortalece a tese que defende a impossibilidade da prisão civil se enveredarmos pela polêmica da desigualdade, da má distribuição de renda, com conseqüências diretas nas oportunidades de educação e crescimento social, considerando que, muitas vezes, a prisão civil acaba sendo aplicada apenas sobre a camada mais pobre da população.
Na esteira da evolução social que parece ter iniciado seus passos mais largos com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, surgem mais recentemente as decisões do nosso Pretório Excelso e dos Egrégios Tribunais das instâncias inferiores que dão mostras de que a prisão civil está para ser banida de nosso país, nos casos aqui tratados, respeitadas as exceções quanto aos débitos alimentares.
180 Jornal Folha de São Paulo de 31/08/09, nº 29.370, p. A-16.
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